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Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

domingo, 13 de dezembro de 2009

RECATO NECESSÁRIO

Inez Lemos

Simone e Sartre, dois monumentos do pensamento moderno, duas vidas que se cruzaram, dois sobreviventes de tempos de guerra. Qual o sentido de escrever sobre eles, filósofos existencialistas, numa época em que a filosofia é tão pouco cultuada, reverenciada? O que têm eles a nos dizer? Como buscar experiências que nos orientam - um estilo de vida que apontam outras atmosferas, outras formas de sentir e expandir a vida? Diante de tantas notícias catastróficas, de uma juventude desesperançada, que, de forma descabida, desafia a vida no trânsito e nas drogas, onde vislumbrar saídas? Modelos de vida que nos descortinem esperança e desejo de lutar, transformar? A vida de Simone de Beauvoir está arrastando multidão ao teatro com a peça Viver sem tempos mortos. Fernanda Montenegro, ao encarnar Simone, metaforiza a época em que o pensamento encantava o mundo com sua pujança e júbilo. Época em que os jovens eram seduzidos pela emoção dos debates. Talvez nos filósofos encontremos passagens significativas que nos ensinem que “viver é melhor que morrer”. Como desafiar a pulsão de morte que contamina os jovens, quando muitos não respeitam leis e se entorpecem diante de uma tela? A transgressão vazia e o consumo catastrófico servem a interesses escusos que oferecem o supérfluo e afasta o transcendente. Na imanência, peregrinamos no escuro.
“Mamãe levava-me por vezes a uma pequena livraria próxima do curso para comprar romances ingleses; duravam porque eu os decifrava lentamente”. Em Memórias de uma moça bem-comportada, Simone descreve belos momentos de sua vida e revela seu estranhamento com o mundo adulto, que insiste em apresentar à criança um mundo já pronto, como se todos o sentisse igual, ou o desejava da mesma forma, quando a condescendência dos adultos transforma a infância numa espécie cujos indivíduos se equivalem: “as crianças adoram avelãs”. Ao que Simone responde “Meus gostos não me eram ditados pela idade; eu não era “uma criança”: era eu”. Desde pequena Simone se distinguia do senso comum, sentia o olhar de desprezo das outras crianças que se regozijavam triunfantes. A disputa na infância é cruel, aniquilante, mas Simone soube enfrentar os olhares de discórdia, de reprovação por suas escolhas singulares. É importante que os pais encorajem os filhos quando esses fazem escolhas que ressaltam aos olhos da maioria.
Simone reivindicava um quarto só para ela, pois assim poderia estudar e ler em paz. Hoje, muitos jovens desfrutam de espaço e tranqüilidade, mas poucos identificam na leitura um bem, meio precioso de sabedoria e formação: “Aprendi a fazer minhas lições e a estudar em meio ao ruído das conversações. Mas era-me penoso não poder isolar-me. Minha irmã e eu invejávamos ardentemente as meninas que tinham um quarto para si; o nosso não passava de um dormitório”. Uma forma interessante de inserir as crianças no mundo encantado dos livros é, quando ainda bebês, ler para eles ou lhes contar histórias. Criar o hábito da leitura, o amor por livros é um dos melhores presentes que os pais podem oferecer ao filho. Assim ele terá boa companhia para o resto de sua vida. Simone reconhecia, agradecida, o privilegio dessa descoberta, acontecimento grandioso - o contato que estabelecia com o mundo por meio da literatura. Encantava-se com as histórias, belo objeto que se bastava a si mesmo, como um espetáculo de fantoches. Era sensível às construções - roteiros em que as palavras adquiriam brilho próprio. Os livros a faziam refletir sobre o mundo que a cercava, como a sonhar, fantasiar e questionar convicções. “Andersen ensinou-me a melancolia; nos contos dele os objetos sofriam, quebravam-se, consumiam-se sem que merecessem a desgraça”. Somos um pouco de cada livro que lemos - uma trama de diversos autores, diferentes imagens que internalizamos e ricos devaneios nos quais mergulhamos.
O mundo universitário explode meio à permissividade e à pobreza simbólica. Jovens ansiosos perambulam em busca de sentido. É visível a descrença dos jovens no estudo e no conhecimento como perspectiva de vida. Desesperançados, vagam pelo campus - espaço esvaziado de idéias que perdeu o papel de fomentador do pensamento. O debate, a contradição e o confronto operavam como formadores de opinião. Como explicar o fato da estudante que foi “quase estrupada” na universidade por portar um minivestido? Quando a universidade não propõe nada mais interessante, cabe aos alunos provocar um lugar para existirem, um acontecimento - apelar às pernas, à violência. Tudo vale para ocupar o vazio de utopia e esperança. Um jovem precisa encontrar algo a que se apegar - sem utopia, viver é pesadelo. Quando tiramos da juventude a esperança por um mundo melhor e resumimos a existência num shopping center 24 horas, não podemos cobrar dela elegância e sabedoria. Os crimes envolvendo os jovens denunciam empobrecimento simbólico. Ao cultuarmos aparência, espetáculo e sucesso instantâneo, denunciamos nossa opção ao narcisismo e ao hedonismo.
Sartre reafirmou o valor da esperança na formação humana: “Acho que a esperança faz parte do homem; a ação humana é transcendente, visa sempre um objeto futuro a partir do presente onde a conhecemos e onde tentamos realizá-la”. Sartre não encarava a esperança como uma ilusão lírica, mas algo que norteava o pensamento e a ação, uma imagem lúcida da condição humana. A jovem que vai à faculdade vestida como se fosse a uma festa, denuncia desespero, confusão de papéis provocada por uma sociedade que não mais cultua o estudo como valor humanitário, condição de transcendência e consistência interior. A universidade perdeu a sedução pela produção de conhecimento - estudar, pensar, debater tornou-se supérfluo. O que vale é o espetáculo - seja por meio da agressão àquele que o provoca -, como fizeram os 700 alunos da Uniban. É a violência metaforizando a vida. Vândalos esfomeados de sentido. Quem não se alimenta do belo (arte, filosofia), se alimenta da carne.
Deliciamos-nos com uma mídia obscena e extravagante, que gosta de exibir mulheres nuas. Cultuamos o exagero, o sórdido e o estupor, divertimo-nos com a maledicência. Alardeamos o erotismo masoquista, a libidinagem em vídeo e a devassidão nas imagens. Somos a república da perversão, cujo entretenimento dos jovens é sair de madrugada espancando mendigos, índios, prostitutas e homossexuais. É a festa da impunidade que grassa no país do carnaval e da cerveja. Aqui vale tudo, desde que seja rentável. Os jovens apenas expressam o inconsciente brasileiro e obedecem ao discurso do mestre, quando agem convictos que o crime compensa - falta de respeito e constrangimento também. Somos uma fábrica de produzir heróis às avessas. Qualquer corpo de fora, fofoca e traição viram notícia, produz celebridades e revertem bons cachês na Playboy. Do cabaré de Brasília ao Big Brother, a ordem é arriscar alguns minutos de glória. Estamos sempre sendo convocados à falta de decoro e honradez. O Brasil é um convite à libertinagem?
“Que venha a mídia, eu quero mais é ser desejada, virar artista, ganhar muito dinheiro, trabalhar pouco e ser respeitada, pois pobre nesse país não vale nada”. Eis o desabafo de uma aluna de escola pública, ao justificar por que não quer estudar - cujo sonho é ser modelo ou artista, como muitas que ela vê na TV. A cultura do espetáculo começa a ruir e as conseqüências alarmam as autoridades. Os crimes envolvendo jovens crescem dia a dia, quando assistimos tanto ao fracasso da lei paterna, como da que regulamenta a vida na sociedade. Focamos a aparência em detrimento à essência, o sucesso à felicidade, o gozo ao prazer, o automatismo à reflexão. Muitos pais se orgulham de ver o filho, ainda de menor, transitando de madrugada em alta velocidade. Sinônimo de virilidade, gente que sabe viver intensamente - os amantes da adrenalina que vivem matando inocentes. Ninguém nasce desrespeitoso, violento. Se algum jovem assim se comporta, é por que os pais não conseguiram impor restrições aos filhos, limitá-los em suas pulsões ensandecidas. Nossa cultura só se dirige ao jovem enquanto cliente, só se interessa pelo seu potencial de consumidor - são alvos das propagandas de cervejas, moda, celulares e carros. Vender o corpo ou se entregar ao gozo mortífero do crack? Deseducamo-los o tempo todo. Se o desejamos sem limites no consumo, não podemos cobrar recato, dignidade, comedimento. Somos a própria falta de comedimento. Interrompemos os outros com celulares, desrespeitamo-los no transito, não assumimos responsabilidades. Dissimulamos. Valorizamos a elegância apenas no vestir. Se tivermos dinheiro, compramos tudo - de justiça a amor verdadeiro. No deserto - sem metáfora paterna e sem os filósofos, apodrecemos na lama da permissividade e da falta de recato.

sábado, 14 de novembro de 2009

Entrevista com Inez Lemos











Balaio da Vivi: uma prosa com Inez Lemos (ENTREVISTA)
Inez Lemos Foto: Beatriz Dantas Editada por Bia Menezes

Para conhecer mais sobre o "Balaio da Vivi", visite o blog: http://videbloguinho.spaces.live.com






"Amar é revisitar, com o outro,
sentimentos, fantasias..."


Inez Lemos é psicanalista, colaboradora do caderno Pensar do jornal Estado de Minas e autora do livro Pedagogia do Consumo. Coordena grupos de estudos em seu consultório em Belo Horizonte, e participa de encontros, palestras, seminários e congressos. No blog Amores Urgentes (http://amoresurgentes.blogspot.com) Inez posta artigos sobre relacionamentos, afeto e educação.


Email: mils@gold.com.br






Com quem vivemos nosso primeiro caso de amor?


Com a mãe ou com aquela que irá amamentar ou cumprir com a maternagem. O primeiro ato sexual de uma criança é com o seio da mãe - sua primeira experiência de satisfação. O seio entra como objeto de desejo. Tal vivência é tão forte que o filho tentará reencontrá-la em outras relações. Ele buscará algo que se assemelhe àquele prazer originário. Nós sempre vamos buscar o objeto perdido, objeto que causa desejo e que nos marcou para sempre.


Malvine Zalcberg em Amor paixão feminina afirma que para a mulher não existe amor sem palavras, e cita Philippe La Sagna: “o que envolve, enlaça o corpo sensível da mulher, não são, antes de tudo, palavras, palavras de amor?” Para a felicidade de todos, é melhor que o homem fale, escreva, desenhe, pinte, e não economize palavras de amor?


As mulheres demandam mais manifestações de carinho. Elas têm necessidade de ouvir de seus parceiros “juras de amor”. Geralmente, elas esperam que eles falem, expressem, com palavras, seus sentimentos. Não bastam gestos. É uma necessidade da mulher, que espera essa confirmação. Ela reivindica um lugar no desejo do homem e faz tudo para ser atendida em seu clamor por amor. Esta é uma questão complexa e está no centro da sexualidade feminina.


De que se trata essa complexidade?


A singularidade do feminino está no corpo. O registro de um corpo imaginário incompleto, ao se manifestar, cria na mulher a ideia de incompletude: ausência do significante universal do falo (pênis). O feminino é um ser que luta para descobrir sua instância fálica. Para Freud, a ausência do pênis denuncia a castração – marca de uma falta, de uma ausência. Diferente do homem que porta o significante que o define, a mulher não tem um significante que a nomeie e a defina. Isso explica por que as mulheres são mais insatisfeitas no amor, por que elas demandam mais palavras – elas requerem ouvir do amado “eu te amo”. Elas demandam um lugar, uma identidade, uma recompensa, um reconhecimento. Algo que as retirem da “síndrome de incompletas, inferiores”.


Foi pensando nisso que Freud formulou a inveja do pênis?


Embora exista um equívoco de interpretação em relação ao que Freud elaborou, podemos compreender que as mulheres, ao se sentirem incompletas, moverão mundos para se compensarem e encontrar o seu falo. O falo não é o pênis. O falo significa poder, é o significante do desejo. Quem tem o falo, ou está com o falo, é quem tem propostas; é o sujeito desejante. Reivindicar o falo é reivindicar poder, reconhecimento. Lacan preferiu nomear a mulher de “não-toda”, apontando para um corpo que registra uma ausência. Contudo, diferente do que muitos pensam, a mulher só tem a ganhar com essa “falta” originária, pois é ela que a mobiliza e a torna uma pessoa curiosa e desejosa diante da vida, cheia de energia para fazer várias coisas ao mesmo tempo. A mulher é plural. Não existe a mulher, mas muitas. A mulher é um ser desdobrável, como diz Adélia Prado no poema Com licença poética; múltiplo, como canta Chico Buarque em Beatriz “será que ela é moça, será que ela é triste... será que é de louça, será que é loucura”. Enquanto os homens, na ilusão de completude, lutam pouco para se tornarem pessoas mais interessantes; engajados na cultura, na vida dos sentimentos e do afeto. Em geral, os homens são mais acomodados. Tentam se equilibrar apenas em sexo-poder-dinheiro.


É essa ausência que diferencia mulher e homem?


Sim. Freud, nos seus estudos sobre a feminilidade, concluiu que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Mais tarde, Simone de Beauvoir consagrou a frase em O Segundo Sexo. Ou seja, a anatomia é destino, mas a sexualidade é construção. Tal questão reforça a diferença abissal entre o homem e a mulher. O homem, ao crescer com a ilusão de que porta o falo, é criado numa cultura em que dele é exigido pouco além de “transitar bem no poder, com bom desempenho sexual, prestígio e sucesso financeiro”. Poucos são os que se interessam por outros saberes, ou se preocupam em melhorar, fazer análise. Ainda são poucos os que aceitam se questionar, se confrontar. Já a mulher, como Ulisses, parte em busca de outros mares. Investiga seus enigmas, enfrenta esse continente negro, esse corpo obscuro. A histérica é o modelo emblemático da mulher que confronta o fantasma da insatisfação - aquela que quer saber o que é ser uma mulher. Ela deseja e procura saber, ao longo da vida, seja nas psicoterapias, seja alhures, sobre seus fracassos, insatisfações, fantasias.


Existe um ser completo?


Não. Todos nós, mulheres e homens, somos sujeitos incompletos e erráticos. A questão é por que as mulheres, em geral, se interessam por mais coisas como: viagens, culinária, decoração, esportes, dança, yoga, teatro, cinema, música..., além do sucesso profissional. Uma vez que as mulheres são marcadas pela insatisfação, é natural esse movimento delas diante da vida. Enquanto os homens, em geral, são menos estimulados e interessados em vivenciar novidades, em ter contato com experiências inéditas e diferentes. E uma das queixas delas, por exemplo, é que os homens têm muita facilidade para se adaptarem à rotina trabalho-família. Contudo, a ilusão de que “nascer homem basta” é uma sacanagem. Já é hora de as mães criarem os filhos (homens) longe desse imaginário falso, que só traz problemas para eles e para as mulheres, pois ambos terão que se haver com esse engodo. É uma das questões que dificultam o bom relacionamento entre o masculino e o feminino. Nascer com o sexo masculino não significa agir como um homem: aquele que assume seu desejo, banca seus interesses. Geralmente, os homens se submetem às mulheres com muita facilidade. É comum ouvir que “os homens têm medo das mulheres”. Acredito que eles temem o desejo da mulher que, quando sabe o que quer, sai de baixo! Muitos abrem mão por comodismo, por dificuldade para assumir o desejo. Mas tudo isso pode mudar, desde que os homens queiram ocupar uma outra posição diante de seu desejo, e que não se coloquem mais como demissionários diante da vida. Viver é briga pra cachorro grande, os frouxos não vão ganhar essa parada. O frouxo, seja homem, seja mulher, é aquele que vive na penumbra, na opacidade, não quer lutar pelo brilho da existência.


Homens e mulheres são mesmo diferentes em relação ao amor?


As mulheres buscam mais o amor. Elas gostam de se sentir amadas e desejadas. A mulher quer ser o objeto de desejo no desejo de um homem, pois a feminilidade se funda na confissão de um homem. Enquanto os homens não necessariamente buscam o amor. Muitas vezes, priorizam mais o sexo do que o amor. Quando a mulher age no amor como os homens, isso pode ser uma devastação, pois, no fundo, ela quer sentir que é dela que ele gosta. O amor está em crise mais para as mulheres, que sofrem mais com a moda da alta rotatividade, dos corpos descartáveis e de pouco valor. O amor mercadoria é um desastre para os corações femininos. Elas podem, a princípio, até se equivocarem, mas depois poderão se sentir usadas, exploradas, enganadas.


Atualmente, de que se queixam as mulheres na clínica?


As queixas mudaram. Hoje, muitas reclamam da sobrecarga de trabalho. Elas se inseriram no mercado de trabalho, mas ainda são as responsáveis pela administração da casa. Muitas reclamam da falta de cooperação de seus parceiros nos afazeres domésticos, julgando-os folgados. Esta é uma questão séria por ser cultural e diz da forma como as mães educaram seus filhos, poupando-os das obrigações domésticas. Muitos reconhecem essa desigualdade e tentam compensá-la. Contudo, muitos se sentem pouco confortáveis em realizar determinadas tarefas, reclamam da falta de treino, da inexperiência na cozinha, pois a mãe não os deixou participar, aprender. Há homens que reconhecem que o mundo feminino é mais interessante que o masculino, e que gostariam de ter sido inseridos nele. É claro que hoje muitos homens têm assumido cada vez mais, e de forma generosa e carinhosa, os diversos aspectos que cercam a vida familiar. Como há homens cujas vidas são muito mais interessantes do que as de muitas mulheres. Estou falando do imaginário que cerca o feminino e o masculino; os imaginários deveriam ser misturados, e não separados. Uma boa relação é aquela em que ambos se ajudam, em que há mais cooperação do que competição.


E os homens?


Em relação ao afeto, tem uma questão que varia muito de geração para geração. Os homens (de 50 a 70 anos) se ressentem da falta de tempo das mulheres para o amor, para o namoro. Isso se explica: hoje, as mulheres estão tendo menos tempo para a vida afetiva. Já os mais novos se interessam menos em namorar, pois foram treinados e até condicionados a formar vínculos afetivos efêmeros, menos consistentes. Suas demandas passam mais pela profissão, pois julgam que ganhando mais dinheiro poderão conquistar mais mulheres. Muitos ainda acreditam que o dinheiro compra tudo, como disse Nelson Rodrigues, “até amor verdadeiro”.


No seu artigo Amor e fantasia, você sugere que a conversa entre duas pessoas que se sentem atraídas deveria começar com uma pergunta sobre a fantasia de cada um: “qual a sua fantasia?” no lugar de “o que você faz?” ou “qual é a sua profissão?”. A fantasia pode ser o prenúncio de um encontro amoroso?


Sim. Talvez as relações estejam tão frágeis e tão líquidas por causa do déficit de fantasia. Um jovem que cresceu acostumado a ficar sentado, por longas horas, diante do computador e da TV, suas fantasias foram pautadas pela mídia. Há um empobrecimento fantasmático e isso reflete nas relações, pois são as fantasias que vetorizam o amor, elas dizem da forma como o sujeito foi marcado e afetado pela linguagem. É a linguagem que atravessa o corpo e o erotiza. O outro materno se dirige a uma determinada região do corpo por meio da linguagem – a boca, por exemplo, deixa de ser um orifício e passa a ser uma zona erógena. Daí a importância da língua materna, da qualidade do vínculo da mãe com o filho. Se antes havia mais mãe que mulher, hoje temos mais mulher que mãe. Muitas desejam ter um filho, mas não desejam ser mães. Mãe, mamar, maternidade, maternagem. Tanto a função materna como a paterna estão em declínio.


Significa que os filhos estão sendo menos erotizados pela língua materna?


Se o tempo da mãe com o filho for um tempo atropelado, ansioso, isso poderá comprometer a produção de fantasias. Vivemos um empobrecimento do simbólico. Muitos pais sacrificam o tempo de conversar, de contar histórias, fantasiar e simbolizar com os filhos. É um efeito da hipermodernidade, da convivência excessiva com as máquinas (computador, TV, ipod, celular...). O homem de outrora fantasiava mais o encontro amoroso. Ele se dirigia à amada cheio de expectativa, desejo, fantasias, pois muito do que ansiava não era passível de se realizar. Sabemos que o desejo advém da falta. Hoje, quando tudo é permitido, o jovem entedia-se rápido. Há pouca emoção no ato sexual contemporâneo. Muitos broxam diante de tanta oferta, tanta permissividade.


Como educar um filho para ser um bom parceiro afetivo?


A criança aprende a amar desde pequena vivenciando a relação com os pais: a relação do homem com a mulher, e a relação dos pais com ela. Um casal que prioriza a qualidade do afeto nas relações tem grandes chances de que seu filho se torne um bom parceiro afetivo. Veja os homens considerados bons amantes - que souberam amar as mulheres -, são homens que “surfaram” bem pela vida, transitaram na cultura, na música, na literatura. São exemplos de pessoas abertas e não reprimidas, pois amar é abrir espaço, expandir. Devem ter sido criados num lar em que se cultuavam a liberdade de pensamento, expressão e a criatividade. Quem fantasia bem ama bem. Eu tenho Chico Buarque e Vinicius como exemplos de homens apaixonantes, bons “amantes”. É claro que têm muitos outros, mas resolvi citar essas “divindades” como metáfora.


No divã o amor não cai de moda. Psicanálise é falar de amor em todas as idades?


Toda demanda é uma demanda de amor. É o amor que nos funda, portanto, é bom que ele seja um forte foco em nossas vidas. Não significa dizer que seja impossível ser feliz quando não estamos amando ou não estamos vivendo uma relação afetiva duradoura. Mesmo quando dizemos que “neste momento, a minha vida profissional é mais importante”, o que subjaz a esta frase é “ganhando mais, poderei cuidar mais de mim e me tornar uma pessoa mais interessante, com mais recursos a oferecer ao outro”. No fundo, sempre estamos buscando do outro reconhecimento, respeito, admiração. Hoje, tornou-se ridículo assumir que desejamos o amor. O mundo do consumo tenta nos iludir com “gadgets” (bugigangas), nos convencer de que os objetos são mais importantes do que as pessoas. Uma bela casa, se não houver amor entre as pessoas que nela habitam, se ela não for aconchegante, pouco vale.


Quem é o sujeito psiquicamente saudável?


Freud postulou que o homem vive bem quando ele se realiza no trabalho e no amor. O sujeito saudável para a Psicanálise é o sujeito desejante, aquele que prima pelo falo, luta para conquistar seus sonhos. É o sujeito que “surfa” bem na vida – tem seus nichos de interesse, de afeto (amigos, amores). Sabe estabelecer laços sociais, profissionais, como também sabe se recolher. Gosta de ficar sozinho de vez em quando. Não tem “pânico” da solidão. É capaz de passar um fim de semana em casa na companhia de um livro, por exemplo. É flexível, não se aborrece facilmente quando seus planos caem por terra, quando tem que abrir mão deles ou modificá-los. É uma pessoa que sabe lidar com as frustrações, com os “nãos” da vida. Também sabe controlar suas pulsões, simbolizar os sentimentos e não se envergonha deles - consegue chorar, se entristecer, se alegrar e se entusiasmar com os bons momentos.


O que dificulta o encontro amoroso hoje?


Você quer saber por que o amor está em crise? Muitos são os fatores que contribuem para a efemeridade das relações. Se hoje as pessoas circulam menos em seu espaço íntimo, em sua interioridade, singularidade, elas se tornam mais disponíveis e vulneráveis aos modismos. Lacan professou que a Psicanálise não perdoa quando o sujeito se demove de seu desejo; é a única culpa imperdoável. Esta questão aponta para uma covardia moral. Quando vivemos um estilo de vida que não é nosso, dando importância em demasia ao que não é essencial, comprando além do que necessitamos e desejamos, agimos movidos por estímulos externos. Nós recuamos diante de nosso desejo para seguirmos o desejo de um Outro. Assim, fragilizados, nos oferecemos ao Outro, comprometendo a nossa satisfação. Insatisfeitos, chegamos ao amor cheio de demandas, cansados e desgastados pelas premências do consumo. O que o amor precisa mesmo é de espontaneidade, autenticidade. Como transitar bem numa parceria afetiva se circulamos fora de nosso eixo identitário? O amor gosta de se enroscar na intimidade, esbaldar-se com naturalidade e liberdade no corpo do outro – tocar o outro em seu âmago. Amar é revisitar, com o outro, sentimentos, fantasias, rever histórias e criar novas. Diferente dessa pretória de exigências que inviabilizam tecer um novo tempo, uma outra ordem amorosa, na qual não mais nos angustiaremos diante de imperfeições e fracassos. O amor também sofre as influências da cultura. Desejar um(a) companheiro(a) é bem diferente de desejar um(a) companheiro(a) perfeito(a). Vale reverenciar o amor possível, aquele que iremos, com muita boa vontade, construir. O amor também não nasce pronto. Aqueles que desejam um amor gostoso e uma relação sexual duradoura devem por eles lutar, e deles cuidar. Tudo na vida requer paciência e dedicação. Amor que faz bem pro coração é aquele que nos encanta e descansa. Como disse Guimarães Rosa: “amor é descanso na loucura”. Pesadelos bastam os que a vida nos reserva.



(Entrevista feita por Viviane Campos Moreira, postada em Balaio da Vivi: uma prosa com Inez Lemos. http://videbloguinho.spaces.live.com)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

AMOR E FANTASIA

AMOR E FANTASIA
Inez Lemos

Onde guardamos o mapa da felicidade? Somos seres cuja concepção de prazer e de amor foi contaminada desde criança por discursos, tanto no espaço doméstico como social. Sabemos que nossas escolhas começaram desde cedo, a ser traçadas por aqueles que nos educaram, nos estruturando na linguagem, que dizia de seus desejos. Como superar o gozo forjado num cotidiano muitas vezes neurótico e competitivo, que nos marcou com significantes negativos, apontando o lugar da vergonha e do fracasso? Como apossar de um estado próprio, de um gozo que não ultrapassa o sujeito, que é medida certa, prazer encomendado, e que se ajusta à nossa hiância? Essa é a busca que nos faz acordar cedo, pular da cama, pisar firme, e sentir que a vida está nos chegando na proporção sonhada, desejada. Para tanto, precisamos saber de um outro gozo, aquele que nos amarra, paralisa e nos aprisiona em nossa falta. E faz nos sentirmos inseto morto, fixado na parede, à espera da chinelada de misericórdia, que chega e nos imerge no mergulho eterno, ponto final da trajetória de dor e sofrimento.
O conceito de fantasia em psicanálise é parte do psiquismo, onde registramos desejos inconscientes, dos quais ela faz parte. A fantasia revela a vida imaginária do sujeito, a forma como ele sente e representa a sua história, atavismos - tudo que funda sua realidade psíquica. Contudo, todos nós portamos uma fantasia que nos marca e nos direciona pela vida afora. Fantasias positivas ou negativas, bonitas ou feias, são elas que determinam nossas escolhas, seja no campo profissional ou afetivo. Tudo isso coloca a fantasia num lugar privilegiado de intervenção, quando, em todo trabalho analítico, parte-se dela para realizar, pelo ato da fala, a travessia.
Um caso de amor que devemos conservar é com a nossa língua. É ela que garante a travessia, que sinaliza ao sujeito uma outra posição diante da vida - a eficácia da análise materializada numa outra relação com o gozo. Saber tourear, enfrentar defesas, resistências que nos fixam no mesmo, nas neuroses - eis o percurso de uma travessia que irá nos jogar num outro lugar, onde uma outra vida se esboçará.
Num mundo que caminha para a exasperação dos mecanismos de controle e administração, otimização dos esforços, querer saber de nossa fantasia fundamental, quem somos e o que realmente queremos, pode soar como despropósito, proposta desordeira porque pede reflexão, pede discordância, mudança. Romper com um padrão interior de pensar a vida, a felicidade, o adestramento que reproduz, de forma voluptuosa, a mesmice padronizante. Eis o desafio. A fantasia barra o gozo. Aquilo que nos prende no amargo prazer do sofrer. Dor e volúpia.
Como remanejar as defesas, controlar nossas neuroses e nos preparar para enamorarmos do outro, com suas tão distintas fantasias? Amar é a razão maior de nossas vidas. Mas amar, (in)felizmente não arreda o curso da tragédia humana. Talvez por isso, muitos preferem “funcionalizar” a relação afetiva, como saída para fugir dos destemperos do amor, desumanizando-o, ou priorizando apenas o encontro sexual. Se somos uma porção de fantasias que mal sabemos, como querer acertar no amor, sem melhor delas saber? E como lidar com as fantasias do outro? Isso tudo faz do encontro amoroso um lugar incerto, vulnerável a fidelidades contratadas. Quanto mais achamos que estamos nos aproximando dele, mais ele nos foge, mais nos falta, nos deixa à mingua.
Um exemplo de desencontros, desses rotineiros: “Ele tem as raízes no mundo rural, ela no mundo urbano. Ele gosta de passar os fins de semana no sítio, ela, de passear em shoppings, filmes de amor. Ele, de ficção”. Até que ponto estamos dispostos a construir uma relação afetiva prazerosa, com interesses divergentes? Será possível traçar um enredo amoroso com cores tão distintas? Existem afinidades, ou elas também são resultado de trajetória árdua, de luta e conquista? Existe um amor pronto? Como resistir às agruras do amor, como reverter, resistir ao amor que chega com morte anunciada, funeral contratado? Como encetar um discurso amoroso que traz vida, promessa de cura, amor que chega para enfeitar um cotidiano desafetado, saturado de palavras vazias, amor promessa de muitos arrepios?
Quão difícil é saber renunciar às nossas fantasias, ao menos um minuto, para darmos ouvido às do outro. Geralmente, quando iniciamos uma relação amorosa, já chegamos com o um plano de metas - dificilmente deixamos o diálogo experimentar as pegadas da noite, os murmúrios do silêncio. No meio da euforia, nos exasperamos, sem darmos tempo para que um mínimo enredo se articule com segurança. Raramente temos a suavidade necessária para saber quem é esse outro que está ao nosso lado, em quais fantasias navegam seus temores e desejos. Nada no amor está pronto, seguro, fiduciário. Tudo está por ser reinventado. Geralmente, a paixão nos tampa os ouvidos, tal como na Odisséia, quando Ulisses escutava, amarrado, o canto das sereias, enquanto seus companheiros remavam de ouvidos tampados, simbolizando dois mundos - do prazer e do trabalho. Em qual mundo habitamos?
Uns foram marcados pelo princípio de realidade, pela ordem, obediência, trabalho e dinheiro. O outro traz dentro de si a soltura do princípio do prazer, a leveza de viver priorizando os poemas da vida. Dinheiro, para que tanto? Iniciam-se desacertos e desencontros. Duas realidades psíquicas, duas fantasias, dois mundos que tentam acertar as horas no mesmo relógio. O relógio da vida não é igual para todos. Um quer o tempo para a poesia - nas palavras, a busca para o encontro das coisas perdidas. O outro o quer para, justamente, fugir da falta de poesia que define sua vida. Acredito que, no fundo, todos nós queremos nos ocupar do prazer, esquecendo de ouvir o outro, sua concepção de felicidade. Vivemos imersos na miséria da usura. Quão penoso é abandonar o lugar da posse e deslocar-se até o outro.
Ela (encarnando aqui o protótipo da insatisfação feminina), em sua ânsia de amor, desejo de completude e fantasia de mulher - de se colocar como objeto de desejo no desejo de um homem -, geralmente não escuta o grito de misericórdia do companheiro, que não consegue suportar tanta demanda, tanta insatisfação! Ele ensaia, a vontade é de gritar: “Chega mulher! Calma! Abandona esse lugar burro!” - uma vez que toda neurose, toda histeria descabida encarna a burrice da repetição. Quando cessa a angústia, é possível o mergulho no outro, a união. O amor que se pretende saudável e que faz festa, exige que abandonemos o lugar do feminino (aquele que traz a falta registrada em seu corpo), no que o feminino tem de faltoso, incompleto. O casal precisa almejar o “não todo fálico”, abandonar o lugar da insatisfação, e, enfrentando a falta, ultrapassar incertezas e impossibilidades. Seja homem ou mulher, a posição fálica diante da vida não nos chega sem luta. Para descolarmos de nossas manias e defeitos, é necessário mais que academia de ginástica e rodada de cerveja em mesa de boteco. O desejo é um estranho que acampa em nossas medulas - como colonizador, que chega e nos leva no chicote. Para nos candidatar a um grande amor, há que se sobreviver às chicotadas. A histeria, seja no homem ou na mulher, é errância da carne, é quando o sujeito se coloca como escravo do desejo do outro. Ou quando, ao não conseguir renunciar ao convite de Dionísio para o banquete, se coloca como cão em lata de lixo - que se lambuza, se farta e se entope das sobras miseráveis do outro, tentativa frustrada de saciar o insaciável. Amor antropofágico.
Ela estava tomada pelo demônio do amor. O que é o demônio? Daïmon em grego, um deus, aquele que sabe. Curioso paradoxo. O possuído do demônio não é objeto de opróbrio por causa de sua ignorância, de seu erro, mas por causa do que sabe. Não devemos saber mais que o necessário, tampouco querer saber o que Deus sabe. O saber de Deus é um saber sobre o desejo, um saber sobre a existência do bem e do mal, do amor e da felicidade. Assim, ela, não satisfeita em esperar a hora para lhe dizer dela, e querendo sempre saber mais, demoniada, prossegue em sua errância. Geralmente, é essa a hora que pomos tudo a perder, meio a lamúrias e demandas. É quando o amor “tira os óculos dos homens, pula o muro e se estrepa todo”. A versão drummondiana do amor acusa a falta de lentes, para se ver além das fantasias.
O amor possível é do sujeito com o objeto, pelo caminho da fantasia. O encontro de duas pessoas passa pela fantasia de cada um, pelas marcas que carregamos, os traços do objeto primordial (geralmente, a mãe). Ao fantasiarmos um enredo amoroso, criamos um lugar, um delírio, e dele tentamos nos comunicar com o outro. Impossível! Penso que, no encontro entre dois, o início do diálogo deveria ser: “qual a sua fantasia”? Distante dos famigerados: “o que você faz”?, “qual a sua profissão”?
Ele falava de seu momento trágico, e ela, sem sua aquiescência, sonhava com “noites de luar e cheiros de dama da noite”. O propósito não é nos culpar diante do fracasso no amor, mas insistir na importância de com-versar. Versar com o outro, investigando desejo e fantasia. Devemos insistir no amor, pois nele atenuamos as perdas. O amor, além de nos deixar ébrios de sentimentos, dispensa a sinceridade, mas não a verdade! E a fantasia, pelas mais diferentes vias, sempre nos leva à verdade. Amar é suportar a dimensão incendiária e demoníaca da condição humana – e nos fazer perdoados.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CABARÉ DOS SOLITÁRIOS

Inez Lemos¹


Nenhum ser humano consegue ser feliz sem um “eu te amo”. Isto é básico. Nascemos do amor e dele necessitamos para seguir pela vida. É o amor que funda o sujeito. Contudo, percebo que o amor está em extinção. Artigo de alto luxo a que poucos têm acesso. O filme Babel retrata vários cenários passados em diferentes lugares, porém, há um especialmente que choca, bate fundo, realidade que nos machuca e despedaça. Trata-se de uma jovem que vive a solidão do mundo tecnológico - gigante que nos esmaga por dentro. No capitalismo das ondas magnéticas o afeto entre as pessoas não é prática valorizada. Falta ímã, liga - substância que nos aquece, qual incêndio no coração, fogueira em busca de alento. O fogo do amor é mistério que queima de prazer. É difícil viver sem ele. A máquina é fria, não produz sensação, emoção. O progresso congela os sentimentos, paralisa o mundo. E o sujeito finge que acredita! Do Oriente, a jovem pós-moderna chora sua falta de amor. Reivindicar amor é reivindicar humanidade! A protagonista recusa a vida fria e artificial produzida na hiper-modernidade. In-timo - relação que pressupõe interioridade, um adentrar na alma do outro, comunicando-se com algo divino, solene e mágico. No mundo atual existe luz em excesso, clarão que cega e seca. No Japão, por meio de um simples botão, acendem-se luzes, ligam-se e desligam aparelhos, mas não se chega à alma – que padece gelada, desprezada.
Quando será que o mundo vai parar de crescer para fora e começar a crescer para dentro? Estamos parados! E amar é movimento abissal, caminhar rumo ao idílico, onírico, tempo de magia e poesia. Como amar sem tocar essas divindades? O cenário amoroso que nos oferecem é de encontros relâmpagos, relações que se curto-circuitam em meio a tantas maravilhas eletrônicas. O futuro está enfermo, padece em leito solitário. As imagens detectam o paciente morrendo de falta de amor. O mundo em Babel é precipício, abismo cavado pela inteligência internacional, mundial, global. “Meu amor...os carros já não andam. Aviões param no ar...meu amor. Meus olhos se apagaram o que fazer? Com meus braços, tuas pernas, nossas bocas. O que fazer? Adeus...Adeus... Tudo que era vida foi embora. Eu...Deus...”. Assim, Murilo Antunes, poeta e letrista mineiro, de forma pungente e aguda, denuncia a tragédia do amor, quando já não existe a crença na vida. Falência da dimensão verdadeira da humanidade. Amor aos pedaços, peças avulsas e soltas no mercado dos corpos! Vida cáustica, quando foram seqüestradas as possibilidades de se fazer amor de corpo inteiro.
A vida é um grande coração batendo. A viagem que travamos com ele é pro-funda - conduz-nos às entranhas, e lá descobrimos espaços inusitados, sonhos reclusos, magias secretas. Quando abrimos o coração, o chão treme, e descobrimos que somos felizes. Felicidade é descobrir, dentro de nós, relíquias a se percorrer e compor poemas. É preparar-se para receber a poesia da vida, que se aproxima tal como o beija-flor que vive nos jardins, cativo das flores. O beija-flor é pássaro nobre, sábio, pois não vaga, como os outros pássaros vagabundos, de galho em galho, à espera do que der e vier. O vôo do beija-flor é direcionado, seu percurso tem endereço certo. Ele sabe o que busca, do que precisa e o que deseja. Desnorteante é vagar sem eixo, sem norte, sem saber onde é a casa da felicidade, lugar escolhido pelo coração para descansar – paragem que cura da secura do mundo.
“Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente, não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-las saindo de Lisboa até Benfica...porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma”. Fernando Pessoa critica a obsessão que se tornou viajar por viajar. Para cruzar mares temos de, primeiro, cruzar nossa monotonia. A vida é um tédio quando não enfrentamos os monstros que nos apavoram. Viajar requer paz interior. Sem abrir espaço dentro de nós, não navegamos rios, não apreciamos cidades. Escalar belas montanhas? Só com o coração em júbilo. O tédio é para ser enfrentado, ultrapassado – sem vencê-lo, vamos estar sempre empacotados, emparedados. Aliás, a melhor forma de não viajar, é entrar num pacote turístico. As agências de viagens, em consonância com os empresários do tédio, nos oferecem um enlatado de lugares. Você compra uma promessa de viagem e realiza um plano de metas, programa intensivo de visitas. Passa por lugares, sem que eles passem por você. Emoção planejada é fingimento, engodo, vida tediosa, tendenciosa. Quem segue as tendências do mundo externo, vaga sozinho e fora do eixo, distante do néctar divino. Divino é viver com a alma embevecida da dor ínfima, ferrugem que corrói lentamente de prazer.
Quão irritante é assistir à destruição do lado emocionante da vida pelos empresários, que tudo institucionalizam e comercializam. Viver tornou-se um mero cerimonial, quando tudo tem de ser impecável. Vida sem pecado, fracassos e derrotas. A vida que os Estados Unidos querem nos impor goela abaixo - vencer ou vencer! Concorrer – correr para o primeiro lugar, conquistar. O filme A pequena miss Sunshine expõe o ridículo norte-americano. Parece que a vida forjada no progresso nos deixou retardados. Agimos como robôs. Viajamos para onde não desejamos, ingerimos todas as gorduras que nos empurram e, depois, nos penitenciamos em cima de esteiras, verdadeiros idiotas correndo parados! Competimos obcecados e enlouquecidos por prêmios. Amor e emoção, só no cabaré dos solitários, demissionários desta vida otária, gente de sangue frio. Viver é sonhar diante do espelho da alma. O que reflete pobres almas magnéticas, que viajam em chips e navegam conectadas, programadas?
O filme mostra a transformação do trágico em cômico - a cena da família à mesa, a refeição de comida comprada que vem embalada em baldes plásticos! O cardápio do dia compõe-se de pedaços de frangos, que se devoram inteiros, com a mão. A América esparrama estupidez pelo mundo, ao transformar o ato de se alimentar em banalidade. Sem o ritual de sentar-se a uma mesa bem-posta, é como ir ao banheiro aliviar-se. Instintos de preservação - comer, lutar, vencer! Banalizar a vida, isso o capitalismo fez com mestria. A vida que restou é a que engolimos nas esquinas - especiarias sem sabor, temperos sem cheiros. A família, hoje, é mais um amontoado de gente que demanda enlatados. Consomem-se sonhos cifrados e projetados nos escritórios de vidro - janelas que se abrem para um céu nublado, cinzento e poluído, fagulhas de cimento em almas de ferro. O cenário a que os dois filmes nos remetem é de um labirinto sem saída. A salvação deve vir de nós, ao recusarmos caminhos que nos enredam e paralisam. Jorge Luis Borges, em Elogio da sombra, nos aponta um lugar: “Não haverá nunca uma porta. Estás dentro. E o alcacér abarca o universo. E não tem nem anverso nem reverso. Nem externo muro nem secreto centro”. Tudo que precisamos para aspirar uma vida saudável, emocionante, é enfrentar com rigor, as bifurcações dos caminhos que travamos a partir de nossas entranhas, víceras que desconfortam - labirinto a ser percorrido, real a ser bordejado.
A vida é para ser bordada, ponto a ponto. Destino traçado por fadas que idealizamos, que nos orientam e nos indicam os jardins de beija-flores. Refeição à mesa, com a família reunida, que, juntos, comem o sofrer, e saboreiam o saber. Nas metrópoles a vida de famílias que abandonaram seus feudos sentimentais e migram para lugares sem memória, conforto sem esperança, é rala, fria e frágil. A emoção, hoje, é participar do Big Brother, eliminar o “babaca da vez”. Triste é a juventude acreditar que a vida é esta obscenidade sem sabor, pecado sem dor, e desistir de encontrar o néctar dos deuses no jardim da existência. Essa vida burguesa, dissoluta e sem sentido, já havia sido severamente criticada por Salinger em seu ontológico O ampanhador no campo do centeio: “Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina...sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro”. Salinger realizou um pouco do desejo de ausentar-se da hipocrisia americana, tal como aspirava seu personagem n’O apanhador. Retirou-se para uma vida despojada e marginal, ao que parece, em uma cabana no Maine, onde não havia água encanada e luz elétrica. Distante da frieza do progresso e longe do alcacér, abarcou o universo ao escrever e revelar ao mundo sabedoria - soube viver a emoção de saber de si.

¹Lemos, Inez. Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

EXPANSÃO DO AMOR

por Inez Lemos

Artigo publicado no caderno Pensar em 11/07/2009.

O filme De repente, Califórnia nos ensina a viver. Zach tem muito a nos dizer. Jovem artista que abandona o sonho de estudar e construir carreira para se ocupar de problemas familiares. Dedicar ao pai doente e ao sobrinho, Cody, abandonado pelo pai e por uma mãe omissa e ausente. Zach retrata o jovem de classe média subempregado e oprimido por práticas sociais obscurantistas, preconceituosas. Sem saída, angustiado, perde o entusiasmo pela namorada.

De repente, eis que reencontra Shaun, um ex-conhecido que volta à cidade e, juntos, passam a surfar - nas ondas do mar e da vida. Aos poucos Shaun vai conquistando o coração de Zach, oferecendo-lhe esperança e coragem para assumir os sonhos e, sobretudo, o amor. O filme aponta a face perversa e maléfica do preconceito. Questiona as relações afetivas interrompidas por olhares maldosos. Expõe o ser humano como pouco evoluído em relação às dimensões da vida ao acreditar em um só modelo de realização amorosa. Está para além da homossexualidade. Ao ampliar o debate sobre homofobia, joga na tela questões como maternidade, paternidade, solidão, cumplicidade, virilidade.

O que é ser homem? Falo do ser que, por portar o pênis (significante fálico), dele cobramos virilidade - posturas de macho. É comum pais reclamarem do filho que reluta em assumir posturas socialmente representativas do mundo masculino - ser forte, durão, às vezes violento, mulherengo. O modelo de homem que a sociedade conservadora cultua é o poderoso, que sabe ganhar dinheiro e esbanja esperteza ao manipular esposas, filhos, amantes. A questão ultrapassa aspectos morais. O filme, em sua sutileza metaforiza “o que é ser homem”. Se homem é não ser frouxo, Zach e Shaun pertencem ao mundo dos homens. Coragem não lhes faltou ao enfrentarem preconceitos e discordâncias familiares, sociais. Ambos, sensíveis às contingências da vida, ao perceberem o desamparo de Cody, acabam por acolhê-lo - não mediram esforços em assumir as funções paternas e maternas do menino. Cody encontra em Zach e Shaun, a família que nunca teve - mesmo tendo pai e mãe vivos. O que coloca em questão o que é ser pai e ser mãe.

O filme, ao questionar a eficácia dos modelos rígidos das sociedades patriarcais e patrimoniais, calcada em casamentos heterossexuais, aponta outras dimensões da existência humana. Até que ponto não assumimos outras formas de viver e amar por falta de coragem? Quão diferente seria a vida se rompêssemos com a rigidez socialmente estabelecida de felicidade? Freud atribuiu ao desamparo do homem sua maior tragédia. Zach descobre nesse amor generoso e despreconceituoso uma perspectiva. Um amor sem as cobranças usuais das relações heterossexuais - quando a mulher entra no casamento portando um rol de exigências. Que metáfora podemos estabelecer quando um jovem troca a namorada por um namorado? Zach tinha em mente que, para ser merecedor do amor de uma mulher, era necessário ter muito que oferecê-la – sobretudo bens materiais. Sufocado e premido pela vida ordinária, vida que convencionamos julgar normal, Zach acaba optando por uma vida extraordinária. Vida que está fora da ordem vigente, para além do senso-comum.

Na verdade o que o ser humano quer é se sentir acolhido pelo outro – parceiro afetivo. Pouco importa a natureza da relação, importa sua qualidade e intensidade. Relação satisfatória é a que nos permite transitar com liberdade pelos sentimentos - surfar nas ondas do desejo sem culpa. Muitos casais se separam não por que o amor acabou, mas por não deixá-lo crescer, expandir. Muitos sonham com um encontro amoroso que os enleva proporcionando maravilhamento, esperança. Um parceiro para enfrentar as ondas da vida - nos proteger da crueldade do mundo. Shaun seduziu Zach não pela sua beleza física, mas pela sua grandeza - disponibilidade interior em acolher seu sobrinho de cinco anos. Postura que falta em muitos pais heterossexuais. A grandeza do filme está em questionar modelos petrificados de famílias e relações, denunciando crenças obscurantistas, maldosas, rancorosas. Geralmente os pais apresentam a vida aos filhos dentro de um rol de preconceitos. Assim posto, concluímos que uma das funções da hipocrisia social é, ao colocar pecado onde não existe, manter o status quo. Mesmo que isso acarrete ao outro sofrimento, desesperança.

O proibido, o que ameaça a sociedade não é a homossexualidade, o sexo extraconjugal, mas a possibilidade do sujeito circular livremente no desejo – toda coragem ofende. O verdadeiro homem (seja do sexo masculino ou feminino) sabe identificar o que lhe faz bem - como gostaria de viver, amar. E assume as escolhas com responsabilidade. O psicanalista Contardo Calligaris em entrevista recente, debate a angústia do homem contemporâneo e conclama as mulheres que lhes deem carinho, compreensão. Julgo que isso todo ser humano deseja e necessita. Contudo, o desamparo atual não é prerrogativa dos homens, tampouco não são apenas as mulheres que estão aptas a acolher o outro em sua solidão - desejo de amar e ser amado. A solidão é conseqüência da falta de coragem dos homens em enfrentar os sentimentos que os dificultam circular no desejo – culpa, compaixão, constrangimento em desagradar os outros. Calligaris reforça: “Eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana. Uma grande parte de sua existência é sempre vivida como se não fosse o que eles deveriam estar fazendo”.

Está na hora de os homens redefinirem seus papéis investigando padrões culturais. Muitos ainda agem premidos por modelos ultrapassados fazendo das tripas coração para não decepcionar pais, esposas, namoradas. Poucos recusam os papeis impostos pela cultura androcêntrica. O homem não veio ao mundo para atender às expectativas femininas (que geralmente são infinitas), tampouco para cumprir com o modelo falacioso de ‘verdadeiro homem’. A questão ultrapassa sexo, gênero. Pertence à humanidade que ainda acredita que felicidade é um produto empacotado, lacrado, com instruções de uso. Talvez falte ao ser humano se libertar da culpa, se imbuir de coragem ao assumir a condução de sua vida. O sujeito que pretende acertar precisa saber qual é a sua onda. Preparar-se e nela se jogar com sabedoria, segurança. Bom mesmo é surfar em águas próprias - saber enfrentar as ondas inimigas e se deliciar com as amigas.

Importa questionar a narrativa de que os homens, com a perda dos papéis tradicionais, não estão sabendo mais como ‘ser homem’, portanto, estão perdidos, angustiados. A angústia não é dos homens, mas da condição humana. Talvez o que deixa os homens perdidos, meio sem rumo, não é o fato de as mulheres assumirem hoje papéis novos, mas a dificuldade de abandonar o lugar de poder e prestígio que antes lhes eram reservados. Contudo, eles só podem se alegrar com as mudanças. Nada mais equivocado do que calcar a identidade apenas na posição social, profissional. O lugar de provedor que a sociedade conferiu ao homem é desumano, opressor. Liberdade é um bem que todos deveriam aspirar - requer coragem na recusa à vida que os outros escolheram para nós.

O preconceito é uma justificativa criada para defender interesses de uma classe ou etnia. Assim foi com o racismo, que surgiu para justificar a escravidão. Hoje, como analisar a homofobia? O que leva os políticos a não aprovarem projetos de leis que regulamentam o casamento entre gays? A manutenção de um conceito preestabelecido que convenha a um segmento da sociedade nos lembra os regimes totalitários. Melhor não seria se as mães educassem os filhos a não se submeterem, sem questionar, às imposições sócio-políticas? Sem culpa, lutariam pelas suas escolhas com responsabilidade e dignidade. O que falta, seja ao homem seja à mulher, é coragem para enfrentar preconceitos e discordâncias no momento de busca de si mesmo.

O avanço técnico deveria vir acompanhado de progresso na ética e na compreensão. Nietzsche, em sua parábola sobre a “morte de Deus”, não se reporta à necessidade de uma crença convencional em Deus. Procura nos alertar da tragédia quando uma sociedade perde seu eixo. Desorientada, mergulha numa eterna noite de barbárie. Ao reavaliarmos o certo e o errado, ao nos colocar humildemente na posição de querer saber, questionando mais que afirmando numa perspectiva de análise - vislumbramos caminhos menos injustos e dolorosos. Sonhar é doença que não tem cura. Preconceito e submissão sim. O vigor da vida cochila em nossos subterrâneos - não é coisa que emerge da noite para o dia. Ele surge, de repente, depois de atravessarmos alguns desertos. Aventurar-se no sentido mais elevado é dar ouvidos aos gritos da alma, ter coragem para se reinventar.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

FRACASSO DO AFETO


por Inez Lemos


Namorar, demorar, morar. Namoro implica compromisso afetivo, sexual. Não estamos falando de fidelidade, mas de parceria entre dois que, unidos pelo desejo de habitar o coração do outro, propõem estabelecer um vínculo amoroso. Se namorar é verbo meio fora de moda, o que leva jovens à rua engrossando o coro dos solitários, descontentes com o rumo que as relações afetivas estão tomando? Cansaram-se da efemeridade das relações, quando bacana era “ficar” juntos sem compromisso? O Movimento dos Sem Namorado, veiculado na mídia há algum tempo, nos surpreende e merece reflexão. As palavras de ordem eram: “Cansei de ser sozinho” e “Quero namorar”. O que mudou na sociedade que leva uma multidão a reivindicar, em ato público, afeto e amor? O amor, ao se tornar palavra de ordem, revela estranhamento. Se sempre houve demanda por parceria amorosa, por que o namoro e o amor se tornaram raros? O que, na sociedade atual, contribuí para o fracasso do amor, do afeto?
Vivemos a sacralização da mercadoria quando a vida afetiva é contaminada pela lógica do consumo, do custo/benefício. Tudo incentiva o sucesso profissional, financeiro e não afetivo. As propagandas estimulam o desejo por objetos - não por pessoas. O amor se coisificou - o objeto de desejo é mais o carro do namorado que o próprio namorado. Como poderia ser diferente se esta geração foi educada e alfabetizada pela TV, absorvendo propagandas com imperativos categóricos como o “compre já”? A publicidade é elaborada por psicólogos, que se empenham para que a propaganda atinja as crianças de forma contundente. Há muito, o marketing utiliza psicólogos para fisgar crianças para o mundo do consumo, explorando a ingenuidade delas. Crianças e adolescentes, inseridos na mania consumista, dificilmente conseguem dela se livrar. Explorar a vulnerabilidade dos adolescentes é estratégia antiga. Lembramos que a adolescência é fase delicada da vida: inseguros, muitos apostam na aparência para solucionar conflitos e temores. Explorado, isso é rentabilidade garantida.
É comum ouvirmos que as crianças já nascem sabendo o que querem. Pouco adianta tentar demovê-las de seus desejos. Ora, se desde que nascem são bombardeadas pela indústria de marketing, propondo um estilo de falar e de se comportar, como poderia ser diferente? O grande mestre da atualidade é o publicitário, que nos dita a maneira de ser, de vestir e de pensar - sujeito desejante forjado na vídeomania. Desde cedo, somos convocados, como consumidores, ao lugar do gozo, a permanecermos na ilusão de completude pela via da aquisição. O que ocorre é a eternização na insatisfação. Consumir se tornou um ato de fé. Vamos ao shopping com a mesma fé com que antes íamos à Igreja.
O grande Outro da publicidade, com suas palavras de ordem, intromete-se em nossas vidas, influenciando gosto, desejo e escolhas. A indústria cultural de massa atua no psiquismo manipulando imaginários e mobilizando paixões. O laço social é promovido por um emissor de imagens que oferece uma identificação calcada no gozo sem limites. Gozo é quando temos prazer e desprazer. No ato da compra, descarregamos nossa pulsão sexual, ele nos eleva e nos deixa felizes por estarmos adquirindo algo. Uma ilusão de completude por alguns minutos, para depois voltarmos ao momento anterior de insatisfação. Quando não interrompemos a cadeia viciada de satisfação/insatisfação, quando não questionamos a compulsão que nos domina e nos leva às compras, nos eternizamos na repetição - sintoma que circula sob gozo mortífero. Saudável é agir fora do gozo. Para tanto, devemos saber mais sobre nossas pulsões, essa coisa que não cessa de se inscrever, de pulsar.
Ao analisarmos a demanda dos “sem namorados”, devemos fazê-lo em consonância com o momento que vivemos, quando o amor surge vinculado a objetos. Várias propagandas associam o casal apaixonado à mercadoria, transmitindo a idéia de que o amor só se realiza por meio da matéria - o sentimento é excluído da relação. O encontro amoroso é mediado pela linguagem, que vai fazer a conexão entre os dois enamorados. A linguagem se apresenta sob a forma de objetos que a cultura elege como representantes do amor - o carro, o vinho, a loira de cabelos esvoaçantes. A loira entra como metáfora da mulher amada - cultuada pela mídia como objeto de desejo dos homens. Os objetos ocupam o lugar da falta, a partir da qual o desejo circula. Significa dizer que somos estimulados a tamponar a falta de amor com objetos de consumo. A mercadoria entra em nosso imaginário como o objeto que simboliza o amor.
Quando substituímos a pessoa por mercadoria - a mulher ou o homem como acessório - o alvo é o objeto que opera como gozo. Nesse momento, o mestre da publicidade intervém na estrutura do desejo humano. Se algo no campo da parceria amorosa não vai bem, isso significa que a demanda deveria recair sobre a forma que a sociedade de consumo elegeu para viver os sentimentos, o afeto. Trata-se de questão anterior, estrutural. As garotas e os garotos não estão demandando apenas namorados, eles estão demandando um outro mundo. Um mundo que valorize os sentimentos, que acolha o desejo e a necessidade de amar e acariciar. Um mundo cujo mestre é o afeto. Consumir objetos não satisfaz as necessidades do coração - contente é o coração cheio de gente. O amor se torna supérfluo diante de tantas palavras de ordem emitidas pelo Outro do mercado. Diferentemente das histéricas freudianas, que não sabiam o que queriam, as moças de hoje pensam saber o que querem ao demandar objetos de consumo. Se soubessem não estariam na rua, reivindicando namorado.
Marx criou o conceito de fetiche (que Freud levou para a psicanálise) ao analisar o valor excessivo que os industriais passaram a atribuir à mercadoria, um brilho a mais para torná-la sedutora e enfeitiçar corações. Fetiche, feitiço. No mundo da mercadorização, o objeto de consumo é apresentado como condição indispensável para concretizar a relação sexual. A fantasia se deslocou do inconsciente para tudo que é vendido como objeto de desejo: carro, bebida, seios, bunda. Instaura-se a crença da satisfação via aquisição do modelo de vida veiculado pela mídia. Como se fosse possível um objeto capaz de acionar o desejo sexual entre duas pessoas, unindo-as em perfeita harmonia, sem conflitos, sem estranhamentos. A idéia romântica de almas gêmeas cabe bem em publicidade de carro e de uísque, mas no real do sexo deixa a desejar. No centro do fetiche está o deslocamento da pulsão sexual para o objeto, aquele que captura olhares sôfregos e desejosos de amor e de sexo.
A forma como nos relacionamos com os objetos revela aspectos de nossa sexualidade. Antigamente, ir às compras era ritual que incluía dia e hora. Tudo era planejado com antecedência, inclusive o dinheiro, pois, geralmente, as compras eram à vista - crediário era muito chato e demorava ser liberado, implicando carnês a serem pagos mensalmente. Com os cartões todo dia é dia de compras. Esperar, saborear. O dia de escolher o vestido da festa era uma epifania. A escolha dos objetos era um ato original, cerimonioso - quase religioso. Convocávamos os deuses e consultávamos as entranhas, pois a escolha equivocada implicava termos de usá-los mesmo assim.
O psicanalista Charles Melman recorre a Lacan para denunciar a devastação que o dinheiro provoca no sujeito quando esse ocupa o lugar do objeto perdido - lugar original, de onde emana o desejo: “Quando Lacan diz que o dinheiro é o significante mais aniquilante que há, ele não diz outra coisa senão que é o lugar onde todas as significações se anulam. É a operação onde se acha enfim dada a resposta à questão do ser, esse famoso “Que sou eu”? O que queremos obturar, ao aderirmos ao destino traçado pelo mestre do merchandising? Não é nada fácil recusar as ofertas de consumo, de endividamento, de estilo de vida e de ideal de afeto e amor que nos querem vender. Não é fácil descobrir o que realmente nos agrada e nos faz bem, o que está em consonância com a forma que gostamos de ser e viver.
“Em minha calça está grudada um nome/ que não é meu de batismo ou de cartório/ Um nome...estranho/...Com que inocência demita-me de ser/ Eu que antes era e me sabia tão diverso dos outros, tão mim-mesmo/ Ser pensante, sentinte e solitário”. Em “Eu, etiqueta”, Drummond manifesta sua indignação com as grifes que desapropriam o indivíduo de sua morada interior. Hoje, muitos jovens se sentem excluídos por não portar o tênis da moda, a jaqueta do momento. A ilusão da inclusão pela aquisição de mercadorias é devastadora e atesta o lamento do poeta, ao denunciar nossa inocência quando nos posicionamos como demissionários de nós mesmos, aderindo a modismos e a tendências. Afeto não é coisa para cair de moda.