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Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

AMOR E FANTASIA

AMOR E FANTASIA
Inez Lemos

Onde guardamos o mapa da felicidade? Somos seres cuja concepção de prazer e de amor foi contaminada desde criança por discursos, tanto no espaço doméstico como social. Sabemos que nossas escolhas começaram desde cedo, a ser traçadas por aqueles que nos educaram, nos estruturando na linguagem, que dizia de seus desejos. Como superar o gozo forjado num cotidiano muitas vezes neurótico e competitivo, que nos marcou com significantes negativos, apontando o lugar da vergonha e do fracasso? Como apossar de um estado próprio, de um gozo que não ultrapassa o sujeito, que é medida certa, prazer encomendado, e que se ajusta à nossa hiância? Essa é a busca que nos faz acordar cedo, pular da cama, pisar firme, e sentir que a vida está nos chegando na proporção sonhada, desejada. Para tanto, precisamos saber de um outro gozo, aquele que nos amarra, paralisa e nos aprisiona em nossa falta. E faz nos sentirmos inseto morto, fixado na parede, à espera da chinelada de misericórdia, que chega e nos imerge no mergulho eterno, ponto final da trajetória de dor e sofrimento.
O conceito de fantasia em psicanálise é parte do psiquismo, onde registramos desejos inconscientes, dos quais ela faz parte. A fantasia revela a vida imaginária do sujeito, a forma como ele sente e representa a sua história, atavismos - tudo que funda sua realidade psíquica. Contudo, todos nós portamos uma fantasia que nos marca e nos direciona pela vida afora. Fantasias positivas ou negativas, bonitas ou feias, são elas que determinam nossas escolhas, seja no campo profissional ou afetivo. Tudo isso coloca a fantasia num lugar privilegiado de intervenção, quando, em todo trabalho analítico, parte-se dela para realizar, pelo ato da fala, a travessia.
Um caso de amor que devemos conservar é com a nossa língua. É ela que garante a travessia, que sinaliza ao sujeito uma outra posição diante da vida - a eficácia da análise materializada numa outra relação com o gozo. Saber tourear, enfrentar defesas, resistências que nos fixam no mesmo, nas neuroses - eis o percurso de uma travessia que irá nos jogar num outro lugar, onde uma outra vida se esboçará.
Num mundo que caminha para a exasperação dos mecanismos de controle e administração, otimização dos esforços, querer saber de nossa fantasia fundamental, quem somos e o que realmente queremos, pode soar como despropósito, proposta desordeira porque pede reflexão, pede discordância, mudança. Romper com um padrão interior de pensar a vida, a felicidade, o adestramento que reproduz, de forma voluptuosa, a mesmice padronizante. Eis o desafio. A fantasia barra o gozo. Aquilo que nos prende no amargo prazer do sofrer. Dor e volúpia.
Como remanejar as defesas, controlar nossas neuroses e nos preparar para enamorarmos do outro, com suas tão distintas fantasias? Amar é a razão maior de nossas vidas. Mas amar, (in)felizmente não arreda o curso da tragédia humana. Talvez por isso, muitos preferem “funcionalizar” a relação afetiva, como saída para fugir dos destemperos do amor, desumanizando-o, ou priorizando apenas o encontro sexual. Se somos uma porção de fantasias que mal sabemos, como querer acertar no amor, sem melhor delas saber? E como lidar com as fantasias do outro? Isso tudo faz do encontro amoroso um lugar incerto, vulnerável a fidelidades contratadas. Quanto mais achamos que estamos nos aproximando dele, mais ele nos foge, mais nos falta, nos deixa à mingua.
Um exemplo de desencontros, desses rotineiros: “Ele tem as raízes no mundo rural, ela no mundo urbano. Ele gosta de passar os fins de semana no sítio, ela, de passear em shoppings, filmes de amor. Ele, de ficção”. Até que ponto estamos dispostos a construir uma relação afetiva prazerosa, com interesses divergentes? Será possível traçar um enredo amoroso com cores tão distintas? Existem afinidades, ou elas também são resultado de trajetória árdua, de luta e conquista? Existe um amor pronto? Como resistir às agruras do amor, como reverter, resistir ao amor que chega com morte anunciada, funeral contratado? Como encetar um discurso amoroso que traz vida, promessa de cura, amor que chega para enfeitar um cotidiano desafetado, saturado de palavras vazias, amor promessa de muitos arrepios?
Quão difícil é saber renunciar às nossas fantasias, ao menos um minuto, para darmos ouvido às do outro. Geralmente, quando iniciamos uma relação amorosa, já chegamos com o um plano de metas - dificilmente deixamos o diálogo experimentar as pegadas da noite, os murmúrios do silêncio. No meio da euforia, nos exasperamos, sem darmos tempo para que um mínimo enredo se articule com segurança. Raramente temos a suavidade necessária para saber quem é esse outro que está ao nosso lado, em quais fantasias navegam seus temores e desejos. Nada no amor está pronto, seguro, fiduciário. Tudo está por ser reinventado. Geralmente, a paixão nos tampa os ouvidos, tal como na Odisséia, quando Ulisses escutava, amarrado, o canto das sereias, enquanto seus companheiros remavam de ouvidos tampados, simbolizando dois mundos - do prazer e do trabalho. Em qual mundo habitamos?
Uns foram marcados pelo princípio de realidade, pela ordem, obediência, trabalho e dinheiro. O outro traz dentro de si a soltura do princípio do prazer, a leveza de viver priorizando os poemas da vida. Dinheiro, para que tanto? Iniciam-se desacertos e desencontros. Duas realidades psíquicas, duas fantasias, dois mundos que tentam acertar as horas no mesmo relógio. O relógio da vida não é igual para todos. Um quer o tempo para a poesia - nas palavras, a busca para o encontro das coisas perdidas. O outro o quer para, justamente, fugir da falta de poesia que define sua vida. Acredito que, no fundo, todos nós queremos nos ocupar do prazer, esquecendo de ouvir o outro, sua concepção de felicidade. Vivemos imersos na miséria da usura. Quão penoso é abandonar o lugar da posse e deslocar-se até o outro.
Ela (encarnando aqui o protótipo da insatisfação feminina), em sua ânsia de amor, desejo de completude e fantasia de mulher - de se colocar como objeto de desejo no desejo de um homem -, geralmente não escuta o grito de misericórdia do companheiro, que não consegue suportar tanta demanda, tanta insatisfação! Ele ensaia, a vontade é de gritar: “Chega mulher! Calma! Abandona esse lugar burro!” - uma vez que toda neurose, toda histeria descabida encarna a burrice da repetição. Quando cessa a angústia, é possível o mergulho no outro, a união. O amor que se pretende saudável e que faz festa, exige que abandonemos o lugar do feminino (aquele que traz a falta registrada em seu corpo), no que o feminino tem de faltoso, incompleto. O casal precisa almejar o “não todo fálico”, abandonar o lugar da insatisfação, e, enfrentando a falta, ultrapassar incertezas e impossibilidades. Seja homem ou mulher, a posição fálica diante da vida não nos chega sem luta. Para descolarmos de nossas manias e defeitos, é necessário mais que academia de ginástica e rodada de cerveja em mesa de boteco. O desejo é um estranho que acampa em nossas medulas - como colonizador, que chega e nos leva no chicote. Para nos candidatar a um grande amor, há que se sobreviver às chicotadas. A histeria, seja no homem ou na mulher, é errância da carne, é quando o sujeito se coloca como escravo do desejo do outro. Ou quando, ao não conseguir renunciar ao convite de Dionísio para o banquete, se coloca como cão em lata de lixo - que se lambuza, se farta e se entope das sobras miseráveis do outro, tentativa frustrada de saciar o insaciável. Amor antropofágico.
Ela estava tomada pelo demônio do amor. O que é o demônio? Daïmon em grego, um deus, aquele que sabe. Curioso paradoxo. O possuído do demônio não é objeto de opróbrio por causa de sua ignorância, de seu erro, mas por causa do que sabe. Não devemos saber mais que o necessário, tampouco querer saber o que Deus sabe. O saber de Deus é um saber sobre o desejo, um saber sobre a existência do bem e do mal, do amor e da felicidade. Assim, ela, não satisfeita em esperar a hora para lhe dizer dela, e querendo sempre saber mais, demoniada, prossegue em sua errância. Geralmente, é essa a hora que pomos tudo a perder, meio a lamúrias e demandas. É quando o amor “tira os óculos dos homens, pula o muro e se estrepa todo”. A versão drummondiana do amor acusa a falta de lentes, para se ver além das fantasias.
O amor possível é do sujeito com o objeto, pelo caminho da fantasia. O encontro de duas pessoas passa pela fantasia de cada um, pelas marcas que carregamos, os traços do objeto primordial (geralmente, a mãe). Ao fantasiarmos um enredo amoroso, criamos um lugar, um delírio, e dele tentamos nos comunicar com o outro. Impossível! Penso que, no encontro entre dois, o início do diálogo deveria ser: “qual a sua fantasia”? Distante dos famigerados: “o que você faz”?, “qual a sua profissão”?
Ele falava de seu momento trágico, e ela, sem sua aquiescência, sonhava com “noites de luar e cheiros de dama da noite”. O propósito não é nos culpar diante do fracasso no amor, mas insistir na importância de com-versar. Versar com o outro, investigando desejo e fantasia. Devemos insistir no amor, pois nele atenuamos as perdas. O amor, além de nos deixar ébrios de sentimentos, dispensa a sinceridade, mas não a verdade! E a fantasia, pelas mais diferentes vias, sempre nos leva à verdade. Amar é suportar a dimensão incendiária e demoníaca da condição humana – e nos fazer perdoados.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CABARÉ DOS SOLITÁRIOS

Inez Lemos¹


Nenhum ser humano consegue ser feliz sem um “eu te amo”. Isto é básico. Nascemos do amor e dele necessitamos para seguir pela vida. É o amor que funda o sujeito. Contudo, percebo que o amor está em extinção. Artigo de alto luxo a que poucos têm acesso. O filme Babel retrata vários cenários passados em diferentes lugares, porém, há um especialmente que choca, bate fundo, realidade que nos machuca e despedaça. Trata-se de uma jovem que vive a solidão do mundo tecnológico - gigante que nos esmaga por dentro. No capitalismo das ondas magnéticas o afeto entre as pessoas não é prática valorizada. Falta ímã, liga - substância que nos aquece, qual incêndio no coração, fogueira em busca de alento. O fogo do amor é mistério que queima de prazer. É difícil viver sem ele. A máquina é fria, não produz sensação, emoção. O progresso congela os sentimentos, paralisa o mundo. E o sujeito finge que acredita! Do Oriente, a jovem pós-moderna chora sua falta de amor. Reivindicar amor é reivindicar humanidade! A protagonista recusa a vida fria e artificial produzida na hiper-modernidade. In-timo - relação que pressupõe interioridade, um adentrar na alma do outro, comunicando-se com algo divino, solene e mágico. No mundo atual existe luz em excesso, clarão que cega e seca. No Japão, por meio de um simples botão, acendem-se luzes, ligam-se e desligam aparelhos, mas não se chega à alma – que padece gelada, desprezada.
Quando será que o mundo vai parar de crescer para fora e começar a crescer para dentro? Estamos parados! E amar é movimento abissal, caminhar rumo ao idílico, onírico, tempo de magia e poesia. Como amar sem tocar essas divindades? O cenário amoroso que nos oferecem é de encontros relâmpagos, relações que se curto-circuitam em meio a tantas maravilhas eletrônicas. O futuro está enfermo, padece em leito solitário. As imagens detectam o paciente morrendo de falta de amor. O mundo em Babel é precipício, abismo cavado pela inteligência internacional, mundial, global. “Meu amor...os carros já não andam. Aviões param no ar...meu amor. Meus olhos se apagaram o que fazer? Com meus braços, tuas pernas, nossas bocas. O que fazer? Adeus...Adeus... Tudo que era vida foi embora. Eu...Deus...”. Assim, Murilo Antunes, poeta e letrista mineiro, de forma pungente e aguda, denuncia a tragédia do amor, quando já não existe a crença na vida. Falência da dimensão verdadeira da humanidade. Amor aos pedaços, peças avulsas e soltas no mercado dos corpos! Vida cáustica, quando foram seqüestradas as possibilidades de se fazer amor de corpo inteiro.
A vida é um grande coração batendo. A viagem que travamos com ele é pro-funda - conduz-nos às entranhas, e lá descobrimos espaços inusitados, sonhos reclusos, magias secretas. Quando abrimos o coração, o chão treme, e descobrimos que somos felizes. Felicidade é descobrir, dentro de nós, relíquias a se percorrer e compor poemas. É preparar-se para receber a poesia da vida, que se aproxima tal como o beija-flor que vive nos jardins, cativo das flores. O beija-flor é pássaro nobre, sábio, pois não vaga, como os outros pássaros vagabundos, de galho em galho, à espera do que der e vier. O vôo do beija-flor é direcionado, seu percurso tem endereço certo. Ele sabe o que busca, do que precisa e o que deseja. Desnorteante é vagar sem eixo, sem norte, sem saber onde é a casa da felicidade, lugar escolhido pelo coração para descansar – paragem que cura da secura do mundo.
“Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente, não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-las saindo de Lisboa até Benfica...porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma”. Fernando Pessoa critica a obsessão que se tornou viajar por viajar. Para cruzar mares temos de, primeiro, cruzar nossa monotonia. A vida é um tédio quando não enfrentamos os monstros que nos apavoram. Viajar requer paz interior. Sem abrir espaço dentro de nós, não navegamos rios, não apreciamos cidades. Escalar belas montanhas? Só com o coração em júbilo. O tédio é para ser enfrentado, ultrapassado – sem vencê-lo, vamos estar sempre empacotados, emparedados. Aliás, a melhor forma de não viajar, é entrar num pacote turístico. As agências de viagens, em consonância com os empresários do tédio, nos oferecem um enlatado de lugares. Você compra uma promessa de viagem e realiza um plano de metas, programa intensivo de visitas. Passa por lugares, sem que eles passem por você. Emoção planejada é fingimento, engodo, vida tediosa, tendenciosa. Quem segue as tendências do mundo externo, vaga sozinho e fora do eixo, distante do néctar divino. Divino é viver com a alma embevecida da dor ínfima, ferrugem que corrói lentamente de prazer.
Quão irritante é assistir à destruição do lado emocionante da vida pelos empresários, que tudo institucionalizam e comercializam. Viver tornou-se um mero cerimonial, quando tudo tem de ser impecável. Vida sem pecado, fracassos e derrotas. A vida que os Estados Unidos querem nos impor goela abaixo - vencer ou vencer! Concorrer – correr para o primeiro lugar, conquistar. O filme A pequena miss Sunshine expõe o ridículo norte-americano. Parece que a vida forjada no progresso nos deixou retardados. Agimos como robôs. Viajamos para onde não desejamos, ingerimos todas as gorduras que nos empurram e, depois, nos penitenciamos em cima de esteiras, verdadeiros idiotas correndo parados! Competimos obcecados e enlouquecidos por prêmios. Amor e emoção, só no cabaré dos solitários, demissionários desta vida otária, gente de sangue frio. Viver é sonhar diante do espelho da alma. O que reflete pobres almas magnéticas, que viajam em chips e navegam conectadas, programadas?
O filme mostra a transformação do trágico em cômico - a cena da família à mesa, a refeição de comida comprada que vem embalada em baldes plásticos! O cardápio do dia compõe-se de pedaços de frangos, que se devoram inteiros, com a mão. A América esparrama estupidez pelo mundo, ao transformar o ato de se alimentar em banalidade. Sem o ritual de sentar-se a uma mesa bem-posta, é como ir ao banheiro aliviar-se. Instintos de preservação - comer, lutar, vencer! Banalizar a vida, isso o capitalismo fez com mestria. A vida que restou é a que engolimos nas esquinas - especiarias sem sabor, temperos sem cheiros. A família, hoje, é mais um amontoado de gente que demanda enlatados. Consomem-se sonhos cifrados e projetados nos escritórios de vidro - janelas que se abrem para um céu nublado, cinzento e poluído, fagulhas de cimento em almas de ferro. O cenário a que os dois filmes nos remetem é de um labirinto sem saída. A salvação deve vir de nós, ao recusarmos caminhos que nos enredam e paralisam. Jorge Luis Borges, em Elogio da sombra, nos aponta um lugar: “Não haverá nunca uma porta. Estás dentro. E o alcacér abarca o universo. E não tem nem anverso nem reverso. Nem externo muro nem secreto centro”. Tudo que precisamos para aspirar uma vida saudável, emocionante, é enfrentar com rigor, as bifurcações dos caminhos que travamos a partir de nossas entranhas, víceras que desconfortam - labirinto a ser percorrido, real a ser bordejado.
A vida é para ser bordada, ponto a ponto. Destino traçado por fadas que idealizamos, que nos orientam e nos indicam os jardins de beija-flores. Refeição à mesa, com a família reunida, que, juntos, comem o sofrer, e saboreiam o saber. Nas metrópoles a vida de famílias que abandonaram seus feudos sentimentais e migram para lugares sem memória, conforto sem esperança, é rala, fria e frágil. A emoção, hoje, é participar do Big Brother, eliminar o “babaca da vez”. Triste é a juventude acreditar que a vida é esta obscenidade sem sabor, pecado sem dor, e desistir de encontrar o néctar dos deuses no jardim da existência. Essa vida burguesa, dissoluta e sem sentido, já havia sido severamente criticada por Salinger em seu ontológico O ampanhador no campo do centeio: “Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina...sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro”. Salinger realizou um pouco do desejo de ausentar-se da hipocrisia americana, tal como aspirava seu personagem n’O apanhador. Retirou-se para uma vida despojada e marginal, ao que parece, em uma cabana no Maine, onde não havia água encanada e luz elétrica. Distante da frieza do progresso e longe do alcacér, abarcou o universo ao escrever e revelar ao mundo sabedoria - soube viver a emoção de saber de si.

¹Lemos, Inez. Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).