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domingo, 13 de dezembro de 2009

RECATO NECESSÁRIO

Inez Lemos

Simone e Sartre, dois monumentos do pensamento moderno, duas vidas que se cruzaram, dois sobreviventes de tempos de guerra. Qual o sentido de escrever sobre eles, filósofos existencialistas, numa época em que a filosofia é tão pouco cultuada, reverenciada? O que têm eles a nos dizer? Como buscar experiências que nos orientam - um estilo de vida que apontam outras atmosferas, outras formas de sentir e expandir a vida? Diante de tantas notícias catastróficas, de uma juventude desesperançada, que, de forma descabida, desafia a vida no trânsito e nas drogas, onde vislumbrar saídas? Modelos de vida que nos descortinem esperança e desejo de lutar, transformar? A vida de Simone de Beauvoir está arrastando multidão ao teatro com a peça Viver sem tempos mortos. Fernanda Montenegro, ao encarnar Simone, metaforiza a época em que o pensamento encantava o mundo com sua pujança e júbilo. Época em que os jovens eram seduzidos pela emoção dos debates. Talvez nos filósofos encontremos passagens significativas que nos ensinem que “viver é melhor que morrer”. Como desafiar a pulsão de morte que contamina os jovens, quando muitos não respeitam leis e se entorpecem diante de uma tela? A transgressão vazia e o consumo catastrófico servem a interesses escusos que oferecem o supérfluo e afasta o transcendente. Na imanência, peregrinamos no escuro.
“Mamãe levava-me por vezes a uma pequena livraria próxima do curso para comprar romances ingleses; duravam porque eu os decifrava lentamente”. Em Memórias de uma moça bem-comportada, Simone descreve belos momentos de sua vida e revela seu estranhamento com o mundo adulto, que insiste em apresentar à criança um mundo já pronto, como se todos o sentisse igual, ou o desejava da mesma forma, quando a condescendência dos adultos transforma a infância numa espécie cujos indivíduos se equivalem: “as crianças adoram avelãs”. Ao que Simone responde “Meus gostos não me eram ditados pela idade; eu não era “uma criança”: era eu”. Desde pequena Simone se distinguia do senso comum, sentia o olhar de desprezo das outras crianças que se regozijavam triunfantes. A disputa na infância é cruel, aniquilante, mas Simone soube enfrentar os olhares de discórdia, de reprovação por suas escolhas singulares. É importante que os pais encorajem os filhos quando esses fazem escolhas que ressaltam aos olhos da maioria.
Simone reivindicava um quarto só para ela, pois assim poderia estudar e ler em paz. Hoje, muitos jovens desfrutam de espaço e tranqüilidade, mas poucos identificam na leitura um bem, meio precioso de sabedoria e formação: “Aprendi a fazer minhas lições e a estudar em meio ao ruído das conversações. Mas era-me penoso não poder isolar-me. Minha irmã e eu invejávamos ardentemente as meninas que tinham um quarto para si; o nosso não passava de um dormitório”. Uma forma interessante de inserir as crianças no mundo encantado dos livros é, quando ainda bebês, ler para eles ou lhes contar histórias. Criar o hábito da leitura, o amor por livros é um dos melhores presentes que os pais podem oferecer ao filho. Assim ele terá boa companhia para o resto de sua vida. Simone reconhecia, agradecida, o privilegio dessa descoberta, acontecimento grandioso - o contato que estabelecia com o mundo por meio da literatura. Encantava-se com as histórias, belo objeto que se bastava a si mesmo, como um espetáculo de fantoches. Era sensível às construções - roteiros em que as palavras adquiriam brilho próprio. Os livros a faziam refletir sobre o mundo que a cercava, como a sonhar, fantasiar e questionar convicções. “Andersen ensinou-me a melancolia; nos contos dele os objetos sofriam, quebravam-se, consumiam-se sem que merecessem a desgraça”. Somos um pouco de cada livro que lemos - uma trama de diversos autores, diferentes imagens que internalizamos e ricos devaneios nos quais mergulhamos.
O mundo universitário explode meio à permissividade e à pobreza simbólica. Jovens ansiosos perambulam em busca de sentido. É visível a descrença dos jovens no estudo e no conhecimento como perspectiva de vida. Desesperançados, vagam pelo campus - espaço esvaziado de idéias que perdeu o papel de fomentador do pensamento. O debate, a contradição e o confronto operavam como formadores de opinião. Como explicar o fato da estudante que foi “quase estrupada” na universidade por portar um minivestido? Quando a universidade não propõe nada mais interessante, cabe aos alunos provocar um lugar para existirem, um acontecimento - apelar às pernas, à violência. Tudo vale para ocupar o vazio de utopia e esperança. Um jovem precisa encontrar algo a que se apegar - sem utopia, viver é pesadelo. Quando tiramos da juventude a esperança por um mundo melhor e resumimos a existência num shopping center 24 horas, não podemos cobrar dela elegância e sabedoria. Os crimes envolvendo os jovens denunciam empobrecimento simbólico. Ao cultuarmos aparência, espetáculo e sucesso instantâneo, denunciamos nossa opção ao narcisismo e ao hedonismo.
Sartre reafirmou o valor da esperança na formação humana: “Acho que a esperança faz parte do homem; a ação humana é transcendente, visa sempre um objeto futuro a partir do presente onde a conhecemos e onde tentamos realizá-la”. Sartre não encarava a esperança como uma ilusão lírica, mas algo que norteava o pensamento e a ação, uma imagem lúcida da condição humana. A jovem que vai à faculdade vestida como se fosse a uma festa, denuncia desespero, confusão de papéis provocada por uma sociedade que não mais cultua o estudo como valor humanitário, condição de transcendência e consistência interior. A universidade perdeu a sedução pela produção de conhecimento - estudar, pensar, debater tornou-se supérfluo. O que vale é o espetáculo - seja por meio da agressão àquele que o provoca -, como fizeram os 700 alunos da Uniban. É a violência metaforizando a vida. Vândalos esfomeados de sentido. Quem não se alimenta do belo (arte, filosofia), se alimenta da carne.
Deliciamos-nos com uma mídia obscena e extravagante, que gosta de exibir mulheres nuas. Cultuamos o exagero, o sórdido e o estupor, divertimo-nos com a maledicência. Alardeamos o erotismo masoquista, a libidinagem em vídeo e a devassidão nas imagens. Somos a república da perversão, cujo entretenimento dos jovens é sair de madrugada espancando mendigos, índios, prostitutas e homossexuais. É a festa da impunidade que grassa no país do carnaval e da cerveja. Aqui vale tudo, desde que seja rentável. Os jovens apenas expressam o inconsciente brasileiro e obedecem ao discurso do mestre, quando agem convictos que o crime compensa - falta de respeito e constrangimento também. Somos uma fábrica de produzir heróis às avessas. Qualquer corpo de fora, fofoca e traição viram notícia, produz celebridades e revertem bons cachês na Playboy. Do cabaré de Brasília ao Big Brother, a ordem é arriscar alguns minutos de glória. Estamos sempre sendo convocados à falta de decoro e honradez. O Brasil é um convite à libertinagem?
“Que venha a mídia, eu quero mais é ser desejada, virar artista, ganhar muito dinheiro, trabalhar pouco e ser respeitada, pois pobre nesse país não vale nada”. Eis o desabafo de uma aluna de escola pública, ao justificar por que não quer estudar - cujo sonho é ser modelo ou artista, como muitas que ela vê na TV. A cultura do espetáculo começa a ruir e as conseqüências alarmam as autoridades. Os crimes envolvendo jovens crescem dia a dia, quando assistimos tanto ao fracasso da lei paterna, como da que regulamenta a vida na sociedade. Focamos a aparência em detrimento à essência, o sucesso à felicidade, o gozo ao prazer, o automatismo à reflexão. Muitos pais se orgulham de ver o filho, ainda de menor, transitando de madrugada em alta velocidade. Sinônimo de virilidade, gente que sabe viver intensamente - os amantes da adrenalina que vivem matando inocentes. Ninguém nasce desrespeitoso, violento. Se algum jovem assim se comporta, é por que os pais não conseguiram impor restrições aos filhos, limitá-los em suas pulsões ensandecidas. Nossa cultura só se dirige ao jovem enquanto cliente, só se interessa pelo seu potencial de consumidor - são alvos das propagandas de cervejas, moda, celulares e carros. Vender o corpo ou se entregar ao gozo mortífero do crack? Deseducamo-los o tempo todo. Se o desejamos sem limites no consumo, não podemos cobrar recato, dignidade, comedimento. Somos a própria falta de comedimento. Interrompemos os outros com celulares, desrespeitamo-los no transito, não assumimos responsabilidades. Dissimulamos. Valorizamos a elegância apenas no vestir. Se tivermos dinheiro, compramos tudo - de justiça a amor verdadeiro. No deserto - sem metáfora paterna e sem os filósofos, apodrecemos na lama da permissividade e da falta de recato.