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domingo, 21 de novembro de 2010

FUNDAMENTALISMO EXISTENCIAL

Inez Lemos

O totalitarismo suprime a liberdade de pensamento. E a política não pode ser permeada de preconceitos. O cenário predominante das eleições deste ano violentou o pensamento. O que subjaz nas concepções conservadoras que obscurecem o debate com a sociedade, como o que se estabeleceu em torno da descriminalização do aborto e do casamento gay? Convocar o evangelho em questões seculares, questões de saúde pública e insistir na vertente fundamentalista é negar emancipação e voltar ao tempo da inquisição, que se arrogava ao direito de legislar sobre o corpo do outro. E tratar, de forma moralista, questões políticas. É assistir a um festival de manipulações criadas por religiosos que se utilizam de prerrogativas do cargo para convencer incautos fiéis. Fazer uso da Bíblia em debates políticos soa como blasfêmia, apelação. Nessa dança de aproveitadores, quem toca a música é o interesse político - a bancada religiosa, longe de querer salvar almas pecadoras, se ocupa em garantir espaço no congresso.


Debater questões sociais com moralidade é esperteza. Quem acusa o outro de pecador se atribui o direito de julgar e controlar. A Igreja medieval usou e abusou de dispositivos de poder. Em nome de Deus, condenou, prendeu, torturou, abusou sexualmente, queimou muita gente e enriqueceu. A forma mais eficaz de controlar um povo é tirar dele a capacidade de escolher com lucidez. Fundar uma concepção em cima de dogmas e tabus é obscurantismo, é retorno às trevas.
A internet tornou-se a tribuna dos jovens. Nela, por meio de sites de relacionamento como o Twitter e o facebook, muitos registram opiniões, protestos. A tecnologia, por meio da internet, atua como valioso meio de comunicação. E os jovens que nasceram pilotando os botões da modernidade virtual, se esbaldam. É o mundo acessado em minutos. Acredito que, se soubermos usá-la, as vantagens superam os perigos. Como tudo na vida, a qualidade da internet dependerá da capacidade do usuário de escolher e discernir o que é lixo e produção descartável, do que é sério e merece conferir.


A estudante de Direito Mayara Petruso, de São Paulo, puxou a fila de jovens preconceituosos e que, pelo que demonstraram, desconheciam o rigor da lei 7.716, de 1989, que reza punir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Impulsionados pela onda de preconceito instaurado na campanha do segundo turno para presidente da República, Mayara postou vários comentários expressando sua ira contra a vitória da candidata do PT, Dilma Rousseff, e foi respaldada por uma enxurrada de textos de outros jovens, cidadãos do eixo Sul-Sudeste. O alvo era os nordestinos. Avaliaram os votos do Nordeste decisivos no resultado da eleição. Entre as pérolas registradas, temos: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”. “Só Hitler acaba com a raça dos petistas construindo câmara de gás no nordeste matando geral”. “O #nordeste é um lugar onde nós, pessoas brancas de classe média alta, vamos fazer turismo sexual comendo umas baianinhas vagabundas”.


A Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE) processa a estudante por discriminação contra os nordestinos. Mayara não está sozinha na empreitada em destilar o ódio xenófobo contra os irmãos de cima. O site Diga não à Xenofobia! denunciou 110 mensagens de ódio aos nordestinos e apoio à estudante. Resta aguardar os desdobramentos, contudo, se depender de Janice Ascari, procuradora regional da República em São Paulo, os intolerantes que compactuaram com a discriminação podem receber a mesma punição: “É um absurdo e incompatível com os preceitos da Constituição”.


Contudo, esse é mais um crime anunciado. Todo profissional que atua no campo da formação humana, e que acompanha a forma como os jovens estão sendo inseridos na cultura, recebe notícias como estas sem surpresa. Intolerância e posturas fundamentalistas intensificaram com a globalização e o fim dos movimentos sociais. A sociedade foi substituída pelo mercado. Interesse e desejo tornaram-se a mesma coisa. As escolas, ao julgarem mais relevante se ater aos conteúdos do vestibular, priorizando uma educação enxuta e focada, descartam a reflexão e o debate. A morte de Deus, proclamada por Nietzsche, aponta a morte da transcendência, o fim da capacidade de recusar o pensamento positivo e único. Enterra, junto à metáfora divina, a dialética, a lucidez e o discernimento. Assistimos ao funeral da tradição do pensamento iluminista - a razão moderna cai por terra. É o declínio do ato de refletir sobre conceitos preestabelecidos, quando a possibilidade de conferir significado à ação é anulada e desprezada.


Família e escola são fortes aliados na formação do cidadão. Embora de lugares diferentes e com atribuições e graus distintos, ambas são responsáveis em apontar os limites fundantes da vida na sociedade. Os códigos de ética e boa conduta operam como vetores. Contudo, quando a violência prevalece entre jovens de classes abastadas, acreditamos que algo está fora do lugar. Ninguém nasce racista, preconceituoso. Onde que eles estão aprendendo a desrespeitar o diferente – o feio, homossexual, negro, pobre e cabeça chata? O discurso predominante enaltece o papel da biologia, atribuindo à hereditariedade, genética, DNA, o destino da criança. É confortável vivermos numa sociedade que desresponsabiliza os pais pela conduta dos filhos, atribuindo tudo aos genes. Todo comportamento é avaliado sob critérios objetivos, desconsiderando o viés subjetivo. Esquece que é a linguagem, que permeia as relações sociais, quem estrutura o sujeito. Uma questão política e cultural torna-se genética. A criança que presencia os adultos desqualificarem um subalterno, cresce convicta que ela é um ser superior a esse outro e desrespeitá-lo é um direito e não uma violência ou crime. Em São Paulo, geralmente os serviços de porteiros e domésticos são realizados por nordestinos.


O preconceito é a crença em um conceito falado, o significante que chega como dispositivo de verdade. O preconceito contra uma determinada raça, ou população, é uma estratégia de poder. A crença de que os paulistas são superiores aos nordestinos produz uma ilusão identitária - tanto nos que se arrogam superiores, como aos que se veem como inferiores. O racismo surge como forma de justificar a exploração de um povo sobre outro, revelando sempre interesses econômicos. Assim foi com os africanos e judeus - sempre haverá um alvo para justificar ações de desrespeito e violência. Criam-se dispositivos que produzem ilusões identitárias, ofertas imaginárias de pertencimento. Os jovens, ao se aliarem aos significantes de classe e ordenadores sociais oferecidos pelos defensores da desigualdade racial e social, são contaminados por mensagens de intolerância. Enquanto a plebe, envergonhada e excluída do banquete, se adapta ao lugar de negativo social. É o fundamentalismo colonizando o inconsciente e a existência. Muitos recusam o debate e, de forma dogmática, seguem os messias da contemporaneidade – mercado, sociedade de consumo, religiões espetáculos.


O espírito iluminista emergiu com o Renascimento, Deus já não exercia tanto poder sobre os homens, e a humanidade, desamparada, via-se responsável por seu destino. Propagava-se o pensamento crítico ao obscurantismo religioso. De Espinosa a Voltaire, Kant a Marx, Freud a Foucault, o que temos é o alerta aos falsos profetas e falsos saberes, convocando o homem a usar o juízo e o pensamento livremente. A maior contribuição do iluminismo foi desmistificar falácias, libertando o indivíduo de qualquer forma de soberania, seja religiosa, geográfica, racial. A questão era subtrair o ser humano de todo particularismo identitário, religioso ou sexual. Contudo, sem o benefício da dúvida e da dialética, recusamos a diversidade, o avanço social, e investimos contra a lucidez.


Camus, em O mito de Sísifo, analisa a tragédia que é viver segundo as ordens de um outro e alheio aos nossos interesses. Camus chamou de homem absurdo o que sabe de sua tragédia. O mito trágico e seu herói, que tem consciência do absurdo que é o trabalho alienante e repetitivo. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, sabe de sua condição de miserável, que não pode fazer nada de eterno, como conferir sentido profundo às coisas e ao trabalho. Sísifo metaforiza a alienação a que muitos se submetem ao viver subjugados. Sempre haverá uma classe disposta a usar de estratégias discursivas para imprimir no outro o sentimento de inferioridade. Há os convictos da existência de uma super-raça - os eleitos por Deus. Oliver Cromwell, militar e político britânico, líder da Revolução Inglesa, no auge do delírio escreve o livro O eleito por Deus. Como os jovens do Twitter que, num momento de alucinação, se julgaram acima do bem e do mal. Espero que não falte gente séria em avisá-los que racismo é crime, no Brasil, desde 1989.






[1] Artigo publicado em 20/11/2010 no caderno Pensar do EM.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A LOUCURA DE MACHADO

Inez Lemos

No mês das comemorações do Dia do Médico (18 de outubro), recorro ao escritor maior, Machado de Assis. Vale lembrar o que esse visionário da literatura já prenunciava: em O Alienista, ele metaforiza a sociedade que vê patologia em tudo, a crença cega na ciência e seus arautos. O médico Simão Bacamarte representa a obsessão pela reclusão ao atribuir aos métodos científicos a responsabilidade pela cura dos cidadãos que apresentavam sintomas psíquicos.
A ciência do século 19, com seu olhar frio e instrumentalizado sobre o sujeito, submete-o ao saber médico – saber/poder. Essa lógica está na contramão do que podemos chamar de tratamento psíquico ético. Tratamento diz da forma como médico e paciente interagem, implica participação no processo. O sujeito interroga o sintoma e, ao se envolver, toma para si a responsabilidade dele. A postura de se implicar no sintoma é diferente de delegar ao outro a responsabilidade pela condução do processo.

O Alienista representa a ciência que se coloca como absoluta, julgando-se capaz de tratar o sujeito apenas por meio da medicação. Uma ciência sem brechas para ouvir o sujeito e seu sofrimento, suas angústias e delírios. Machado, já naquela época, lança sua profecia contra o discurso da ciência encarnado em Simão Bacamarte. Crença que atua no sujeito como dogma: “A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução”.
A maioria da população de Itaguaí se submeteu ao poder de Bacamarte como alusão ao pensamento único, tão em voga no mundo contemporâneo. Vivemos o despotismo científico - hegemonia do discurso da ciência, que vê cada sujeito como objeto a ser manipulado, avaliado e diagnosticado. O viés biológico, que associa cada sintoma ao potencial de medicação, nos remete à idéia de cárcere e terror que domina Itaguaí: “A Casa Verde é um cárcere privado”. Que lugar a indústria farmacêutica ocupa nessa história? Trocamos as grades dos hospícios pelos efeitos deletérios das drogas lícitas, inibidoras e amortecedoras do sujeito desejante?

A questão não é denunciar a ganância das indústrias de medicamento, mas refletir sobre o conjunto de medidas no sentido de calar as vozes discordantes, apaziguando o sujeito de forma sutil, branda e limpa. A quem interessa o apagamento do sujeito? Uma vez diagnosticado, cria-se o estigma, o preconceito, a vergonha e a inibição. Ter um diagnóstico de bipolar é como ser premiado pela profecia de doença, sofrimento que poderia ser evitado. “Ao me separar de minha mulher, fiquei deprimido, me sentindo frágil, desvitalizado. Procurei um psiquiatra e ele me medicou, dizendo que eu era bipolar”, testemunha G, que chegou para a análise fazendo uso de lítio - medicação controlada. Hoje, G tenta superar as marcas do diagnóstico equivocado. Contando apenas com a coragem moral, ele busca investigar, ao deslizar sobre as dores guardadas, um novo sentido para a vida.

Ser alienado é se demitir da condução da vida, submeter-se à pragmática prescritiva e, sem interrogar, consumir tudo o que ela determina. Sem questionar os diagnósticos, sem querer saber mais de si, o sujeito se entrega à estratégia publicitária dos laboratórios, que insistem em ensinar a ele como se portar diante dos sentimentos. O que se modifica é a posição subjetiva do usuário, que se comporta como refém da psicofarmacologia. O principal desastre dessa estratégia discursiva e mercadológica é a patologização dos sentimentos e da existência, pois qualquer mal-estar se torna doença. Curar-se significa decifrar o sofrimento. Cura é mais que bem-estar, é mais que se sentir feliz. É se sentir livre, dono de seu corpo, sua vida.

Michel Foucault já havia nos alertado sobre abusos dos dispositivos de poder - saber que, mal empregado, mais oprime que liberta. É mais fácil intervir na doença que no sujeito e seu sintoma, excluindo-o e rotulando-o. A reclusão moderna é diferente, não se dá pela força, mas pelo convencimento, pela submissão e pelo autoengano. A única sanidade disponível é recusa ao afã da nova ciência. Quem é o louco da neociência? Os laboratórios, os médicos ou o paciente, que se submete, sem questionar, aos diagnósticos? Há algum tempo, seria impensável a criança ser diagnosticada, apressadamente e de forma pouco criteriosa, de psicótica ou hiperativa.
A sanidade que desejamos lembra refúgio, apaziguamento. Lugar a duras penas conquistado para viver os sonhos. A insanidade do homem moderno é não saber de seu desejo. O conceito atual de sanidade nos lembra obediência. São é aquele que cumpre as ordens médicas, que cobra do doutor fórmula mágica para o transtorno. Eis o paradoxo: ao nos submetermos aos investimentos do capital contra a subjetividade, disponibilizamo-nos a seus interesses e o elegemos dono de nosso corpo. A loucura machadiana fez literatura e pôs em xeque o poder da ciência. Denunciou a sordidez da sociedade, rejeitando crenças petrificadas, mitos perversos, valores e comportamentos elitistas e excludentes. Deflagrou a barbárie conduzida pelos barões.
Quando tememos a insanidade, revelamos ódio aos projetos com os quais nos envolvemos de forma contrariada. A busca de sucesso financeiro a qualquer custo revela ódio à felicidade - medo da satisfação primordial, o encontro com o primeiro objeto amado e perdido. Temer a insanidade significa temer a infelicidade. Como levar à frente o projeto de vida que escolhemos sem nos deixar invadir por uma força transbordante e arrebatadora, que nos joga do outro lado da vida, sem autodomínio?

A loucura é vista como perda de controle - o sujeito rompe com o proibido e assume escolhas descabidas, fora da ordem social. Se sanidade é assumir projeto próprio de vida, descobrir a autoexpressão, tal postura se aproxima do conceito de loucura. Se, por um lado, sanidade diz da coragem de ludibriar e escapar dos despropósitos oferecidos pelo mercado, por outro, isso inclui uniformidade - todos se encaixam no mesmo padrão, apagando diferenças e subjetividades.
É difícil debater sanidade numa cultura que não incentiva o pensar e a criatividade. Desejamos, na sanidade, exatamente o que ela exclui: paixão e excentricidade. Se a loucura está relacionada ao excesso, o são é uma pessoa limitada em sua “loucura”. Falsa sanidade é nos assujeitar à pressão social que nos dificulta assumir a responsabilidade por nossa vida, vivendo-a tal como nos agrada. A retórica da sanidade e da loucura esbarra na busca do sentido da vida. Ou de como se escapa da falta de sentido. A sanidade aparece como conquista: algo que adquirimos ao longo da vida, e não como algo com que nascemos. A luta pela lucidez inclui não se contentar com explicações simplistas, atribuindo tudo à genética. Muitos atos de insanidade não resultam da ausência de lucidez, mas do uso perverso dela. Para os superficialmente sãos, sanidade significa vida sem dor e tormento, totalmente integrada ao modus vivendi.

A sanidade passa pela capacidade de enfrentar a própria turbulência. O que sentimos e desejamos depende do lugar de onde partimos – vivências e raízes. Viver implica conflitos, e a realidade não coincide com o que idealizamos. É salutar saber lidar com as dificuldades que o querer envolve. Viver é diferente de vencer - significa fazer escolhas e se aventurar na dimensão humana. O percurso interessa mais que a chegada – quão chato seria trilhar caminhos já sabidos. A sanidade que interessa é construída no contínuo ganhar e perder, amar e sofrer - longe do fundamentalismo burguês de sucesso, poder e segurança.

Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral, nos lembra Platão: “Foi graças à loucura que as coisas mais excelentes surgiram na Grécia”. Loucura necessária é ousar, esticar o fio da existência, transcender paixões. Como testemunha o velho pensamento: “Se o louco persistir em sua loucura, torna-se sábio”.

Machado é um escritor que faz jus a seu tempo e a seu país. Com elegância e nobreza, lançou ironia sobre burgueses que não economizavam desfaçatez - elite tacanha e pouco ilustrada. Com certo fel de classe, ilustrou e representou os que usavam o moralismo para se defender. Não poupou as mulheres e os casamentos por interesse: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Eis a grande loucura de Machado: com coragem e lucidez, denunciou extravagâncias da sociedade conservadora, patrimonialista e reacionária do Rio de Janeiro no século 19.

Talvez por tudo isso o Brasil não produza mais loucos como Machado. Vivemos tempos de aberrações, perversões, crimes e violência. Os excessos se deslocaram - na ausência de lei, a arte é dispensada. A loucura rentável prejudica, agride e faz a roda do consumo girar. A libido foi cooptada pelo mal. O demônio da modernidade se alastrou junto à massa, banalizando o sentido da vida e nos encerrando na miséria existencial. Barbárie é vida sem utopia, sem coragem para transgredir palavras de ordem: goza, compra!


Artigo publicado no C. Pensar do EM em 30/10/2010.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fantasiar,brincar e cozinhar

Inez Lemos

No Brasil, o marketing direcionado para crianças não é regulamentado -regulamentar é diferente que censurar. Muitos países proíbem veicular propagandas nos intervalos de programação infantil. Aqui, as tentativas governamentais que ocorreram nesse sentido fracassaram. Essa é uma briga que deve ser travada com o envolvimento da sociedade civil. Se vamos às ruas para defender outros interesses, por que não denunciamos mais esse abuso? Conscientes do desastre que as propagandas provocam nas crianças - ao induzir neurônios a pensar o mundo pela lógica do consumo -, pais e educadores deveriam iniciar um movimento exigindo ética das autoridades e agências de publicidade.

A linguagem contemporânea que estrutura o sujeito do inconsciente é a do adquirir, exibir e ostentar. A idéia de felicidade na qual inserimos as crianças se distancia do ideal de família, quando essas conservavam valores e traços identificatórios – a lasanha da avó e a feijoada da mãe. Predomina o ideal disseminado por Ronald McDonald - que gosta de afirmar que não vende sanduíches, mas alegria, fraternidade, diversão e confiança. Susan Linn em Crianças do consumo: a infância roubada informa: “Em 1990, uma pesquisa com crianças de oito anos mostrou que, quando lhes perguntava: “com quem vocês gostariam de sair para comer”? Pais, professores e avós ficavam todos atrás de Ronald McDonald e do Tigre Tony. Mais da metade das crianças que participaram da pesquisa na Austrália achava que era Ronald quem mais sabia o que as crianças deveriam comer”.

Interessa ao mundo da publicidade explorar a infância. Bebês não protestam e crianças são influenciadas e exigem o que determina a propaganda - molestam os pais por um McLanche Feliz. Encurtar a infância é conferir a ela o estatuto de consumidor. Muitas famílias acabam confundindo precocidade com maturidade ou inteligência. Não percebem a diferença entre demandar produtos já viciados com escolhas maduras e direcionadas pelo desejo. Muitas mães, diante da criança intransigente e bombardeada pela mídia, exclamam: “meu filho já sabe o que quer”. A trajetória do desejo iniciava-se nas refeições familiares - a convivência entre galinhada e couve fundou imagens que nos prepararam para os saltos do mundo. Diferente de ser marcado por mensagens carregadas por emoções duvidosas. Um cenário enfeitiçado de guloseimas e colesteróis, em caixinhas de surpresas, embala a garantia do retorno. O fetiche da mercadoria, na moderna insanidade mercenária, tornou-se uma obsessão. Sem uma rígida regulamentação de marketing, provocamos nas crianças o deslocamento do desejo e comprometemos o futuro do país. Qual o ideal de mundo que prevalecerá nas cabeças dos futuros homens e mulheres?

Brincar com brinquedos que transporta para o mundo lúdico, de fadas e mistérios, desenvolve a fantasia e prepara a criança para as adversidades da vida. Inteligência é capacidade de criar saídas em situações difíceis e desafiantes. Brincar e fantasiar - ambos defendem a criança da loucura do mundo. Sem fantasiar, nos expomos ao real de forma desprotegida. Os verdadeiros pensadores foram vetorizados por um imaginário de fantasia. A grande razão da vida, a única loucura que nos redime, é a da criação. Sublimar, provocar o atravessamento pela arte. O encontro do sujeito com a interioridade é fruto do mergulho em fantasias originárias - raízes fiduciárias.

Quais as conseqüências de passar a infância operando botões, guerreando com monstros virtuais? A guerra travada na tecnologia não provoca medo, não coloca a criança em situações de apuro, tampouco a prepara para a verdadeira guerra da vida. A guerra que travamos com os fantasmas que nos emperram. E bloqueiam os voos da existência humana. Ao construir e manipular brinquedos construídos para si e por si, a criança de outrora vivenciava oportunidades de encetar o processo de subjetivação.

Manoel de Barros, em Memórias inventadas, nos fala da importância de escovar osso, trabalho de arqueólogo. A arqueologia da vida começa na infância, quando devemos escovar tudo – fuçar buraquinhos, enfiar dedos nas covas da vida. Viver é desvendar furos, alisar pêlos, desvelar sentidos. “Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras”. Se seguirmos as pecadas do poeta, descobrimos que é na infância que aprendemos a remontar sentimentos – destampar oralidades sonolentas.

Sempre que leio Manuel de Barros, me lembro de minha infância no sertão paulista. E me assusto com a diferença da infância das crianças urbanas. A maioria cresce trancada dentro de caixotes e confinadas diante de aparelhos. Antigamente, cada criança era responsável pelo seu brincar, cabia a cada uma inventar o seu espaço lúdico. Eu gostava de fazer casinhas debaixo de árvores. Varria o chão de terra, tirava as folhas secas - tudo lisinho, limpinho. Fazia o fogão com pedras e nele cozinhava arroz e abobrinha. E sonhava com uma vida de “casa de verdade”.

Aprender a gostar de casa é uma coisa muito boa. Casa, culto, cultura. Morar, namorar. Gostar de habitar, abrigar e hospedar. Cultivar lembranças e manias que nos posicionam na vida. Acho que é assim que nasce, na pessoa, o desejo de casar - brincar na casinha. Amar é demorar no coração do outro. Bom para quem gosta de casa e de cozinha. Quanto mais o cozido demora a ficar pronto, mais dá tempo para a gente pensar na vida e nos segredos. Fantasiar, brincar e cozinhar devem ser irmãos. Como saber e sabor. Verbos de muita personalidade. Se a gente souber conjugá-los, nos transportarão para mundos muito interessantes. Gostar de descobrir palavras, pessoas e comidas, se aprende de pequeno, brincando de graça, na natureza.

Brincar de graça é extrair graça com graveto, folhas secas, rios e animais. Assim é que, antigamente, as crianças se preparavam para as coisas sérias da vida. Aprendiam a ter esperança no futuro – pois tudo era custoso e gostoso. Tudo que nos chega muito fácil é sem graça. Toda infância brinca igual e sofre pelas mesmas coisas. Lá no sertão, o sofrimento nos chegava devagar. A dor andava a cavalo, hoje ela anda de carro importado. É sofrimento apressado para ser sanado. A gente cozinhava, na mesma panela, as tristezas e as alegrias. E temperava com paixão, dignidade e paciência. Hoje é tudo comida pronta. A gente, da cidade, não sabe cozinhar comida que alimenta a alma. Só comida sem emoção que mata a fome da pressa. Comida congelada não tem sabor – é comida sem personalidade. Comer sem vontade faz mal, deixa a pessoa desentusiasmada e desapaixonada. Foi assim que a vida da cidade transformou tristeza em depressão - falta de paixão.

A humanidade busca, desesperadamente, a felicidade - um abrigo no coração do outro. A questão é que, muitas vezes, a buscamos de forma errada. Ao direcionarmos o desejo, o camuflamos. Com a abundância de opções de entretenimento, o desejo humano deslocou das instâncias afetivas para as instâncias de consumo - sofisticamos nas aquisições. A economia do Brasil vai bem, mas a educação vai mal. No item consumo de bens materiais, somos campeões, mas no de bens culturais somos pífios. Desdobramo-nos para suprir os filhos de celulares, jogos eletrônicos, mas não gostamos de investir em livros e cursos. O país carece de mão de obra qualificada, inclusive no alto escalão das grandes empresas.

Como adquirir objetos de desejo não satisfaz a demanda interna, não obtura a falta ôntica - incompletude originária -, acabamos nos embreando em mata escura. O bem-estar prometido pelo mundo financeiro, ao vincular conforto interno com mercadoria, fracassa. Ir às compras não hidrata a alma, tampouco nos torna melhores profissionalmente. O otimismo apenas no consumo é mais uma falácia que querem nos vender.

Que metafísica pode existir numa refeição fast food? Em que transcendência os objetos nos transportam? A genialidade do marketing consiste em transformar coisas banais e corriqueiras em grandes acontecimentos. Que fantasia há numa ida ao shopping, num big mac? Ao consumir os representantes do capitalismo globalizado, as crianças se sentem integradas. Como se os objetos garantissem uma filiação - lugar de pertencimento e posição de prestígio. Os objetos operam com a sensação de acolhimento - aquisições com efeito de reconhecimento. Criar filhos na cartilha do consumo frio e desidratado é padecer no deserto e expô-los às mazelas da hipermodernidade. Muito barulho por nada.

A vida mercadorizada destrói esperanças e personalidades. Ao perder o desejo de lutar por outras concepções de vida, atolamo-nos na desavergonhada crença no consumo como solução da insatisfação humana. Como suportar a dor de se ver no limbo do comum, do ordinário? Cultuar a si próprio, brincar com lembranças e explorar fantasias é recusa aos fragmentos de um reinado que ruiu - palco sem espetáculo e praça sem coreto.

Artigo publicado em 16/10/2010 no caderno Pensar do jornal EM.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Cordialidade cínica

Inez Lemos


O Senado surge no Império Romano como assembléia de patrícios, constituída por magistrados, senhores senis e experientes que primavam pela felicidade coletiva da pólis. Para Aristóteles, a política é o desdobramento natural da ética, quando cabe aos políticos se ocuparem com a felicidade da pólis, quando a virtude está no meio-termo - condição ideal para se viver bem, evitando os extremos. O vício é efeito da falta ou do excesso. República é um sistema de governo que visa democratizar o Estado, tornando-o público e priorizando os interesses dos cidadãos que elegem seus representantes. Aristocracia é um governo monopolizado e controlado por um grupo de privilegiados, representantes de uma casta, fidalguia com foros de nobreza. Cordialidade cínica é o comportamento que prevalece hoje na política brasileira, quando políticos, temendo a lei, preferem absolver alguns corruptos a serem também fiscalizados e condenados, livrando os colegas das acusações. Cordialidade - traço que Sérgio Buarque de Holanda apontou como do brasileiro, é aqui identificado como permissividade perversa.

Roriz, Arruda, Maluf, Collor, Calheiros. Todos já foram processados em suas trajetórias políticas, e alguns desejam se reeleger nas eleições de 2010. Pelo visto, vão encontrar uma brecha na Lei do Ficha Limpa que impede a candidatura de políticos condenados por decisão colegiada. É comum, no Brasil, os políticos darem um jeitinho e escorregarem, escapulir e continuar livres para roubalheiras e falcatruas. Calheiros é senador pelo estado de Alagoas (PMDB). Cresceu em Murici entre pobres e ricos, usineiros e bóias-frias, coronéis e retirantes. Ali fez escola para assumir o senado, lugar privilegiado, no Brasil, para se construir impérios. Entre estratégias e artifícios escusos, tapinhas nas costas, propinas, o moço alçou vôo. Collor e Calheiros representam o atraso implantado pelos coronéis do nordeste. Deflagra o Brasil arcaico e faz inveja aos que temem a lei - somente o perverso e destemido que desafia a lei, esbanja cinismo e hipocrisia. Do outro lado, as vítimas, ora das enchentes, ora da seca, afundam na miséria. Alagoas é o nosso Haiti.

A seca tem poderes ambíguos - ao provocar a miséria, abre espaço para os espertos explorarem a população e sua condição de miserável. Contudo, a seca gera riqueza e cria mecanismos de desvio de dinheiro público. É uma indústria que sangra anos lama do subdesenvolvimento político do qual Alagoas é apenas mais um exemplo. O Brasil tornou-se refém da ambição e da mentalidade atrasada que se alastrou pelos latifúndios e usinas de açúcar. A desfaçatez da elite agrária deixa herdeiros. Muitos políticos conservam traços do escravismo e do latifúndio: casa grande & senzala, coronelismo, voto de cabresto, currais eleitorais. O voto era garantido pelo fazendeiro em troca de favores. Foi nessa escola que muitos políticos se diplomaram. Um povo que permite tanta descompostura e perversão de seus políticos, ou está com a autoestima em frangalhos, ou perdeu as forças para lutar. O Brasil é hoje uma nação desesperançada - cansada de esperar dos homens que ocupam o poder, ética. Acontece que política exige mais que esperança, exige uma opinião pública forte, participativa e atuante, tudo que só agora estamos construindo.

Enquanto o Brasil não combater a desigualdade social de forma efetiva, com educação de qualidade, escolas técnicas, emprego e oportunidades, não banir o foro privilegiado, riscando de nossa Constituição o tratamento desigual e perverso, sobretudo a imunidade parlamentar, nunca iremos mudar de posição. Sempre seremos um país violento, inseguro e injusto. País cujo Senado, além de pouco operante, é um dos mais caros do mundo. Enquanto o garoto da favela ligar a televisão e for incentivado por deputados e senadores a roubar e matar, dificilmente a violência vai diminuir no Brasil. Eles apenas colocam em prática o que os poderosos realizam há anos. O alvo será sempre o indefeso, o mais fraco – pobre, negro, mulher e homossexual.

Os governantes sempre trataram o povo com desdém e descaso. A imagem do Brasil é de uma mãe que, sem escrúpulos, discrimina uns filhos e privilegiam outros - rapagões que só sugam o leite dos menores. Os nordestinos, cuja vida sempre foi severina, não mereciam assistir à espetacularização dos bandidos, heróis da desfaçatez e da arrogância. Muitos devem se envergonhar de seus patrícios emplumados em seus conservadorismos. Aos retirantes, resta desbravar outros sertões, pois Passárgada só existe para os amigos do Rei. Os políticos há muito vem vendendo a alma aos demônios. Demônio é aquele que, na falta, viciou-se no excesso. Excesso de riquezas, cinismo e desonestidade.

Mais que denunciar e chamar a nossa atenção, devemos fazer uma revisão nas posturas cínicas e antiéticas que temos demonstrado. Cinismo é isso, além de não assumirmos os erros, ainda queremos deles tirar alguma vantagem. No Brasil do “jeitinho”, está cada dia mais difícil cobrar da moçada ética e cidadania. Se a melhor forma de educar é por meio de exemplos, onde que os jovens irão encontrar disponíveis posturas que os deixem honrados e orgulhosos? As atitudes que dominam a cena política são as piores – senadores e deputados envolvidos em crimes se elegendo. A questão está na impunidade aos infratores. Errar é humano, contudo, quando deixamos de submeter o sujeito em correções e punições, eternizamo-lo na anomia - atos perversos, fora da lei.

Como o Brasil foi se tornando um país frouxo no cumprimento das leis? Quando os políticos autorizam um colega envolvido em corrupção a continuar legislando, sem sofrer sanção, eles estão formando uma nação de corruptos e criminosos. Não existe autoridade desvinculada da figura paterna ou de quem a exerce – presidente, senador, pai, professor. Ela resulta de mecanismos eficazes na regulamentação do excesso de gozo. A lei, para ter eficácia, tem que valer para todos. Quando não oferecemos aos jovens exemplos de honestidade e respeito ao outro, convidamo-los a usar a violência e o poder para atingir seus objetivos. Como transmitir aos jovens a lei simbólica, exigindo que caminhem na legalidade? Sabemos que a força é insuficiente para impor respeito e cobrar ética, cidadania.

Ética passa pela alteridade, quando o outro entra em cena. Para que a ética prevaleça numa comunidade, ela tem que lhe conferir sentido. Onde está o sentido de se viver num fundamentalismo consumista e competitivo, em que a maioria quer vencer a qualquer custo? Quais os valores fundantes de nossa sociedade? Educamos os filhos em valores que não estão relacionados ao espaço público. Os interesses privados sufocam interesses como solidariedade e amizade, colocando em risco a vida na comunidade. O dia em que perdermos o elo que une uma nação, perderemos também a autoridade necessária na condução de um país. Mergulho na desordem absoluta, no desrespeito ao outro. Ética é a arte do bem viver.

A lógica da cidadania deslocou-se para a ótica do consumidor. Se o sujeito for endinheirado será bem recebido, querido e respeitado nos estabelecimentos comerciais. O Brasil sempre dispensou tratamento diferenciado aos colarinhos brancos, corruptos ou não. É quando o garoto descobre que, para se dar bem, basta ser rico, poderoso e famoso – valores que certamente vão lhe garantir mulheres bonitas, reconhecimento e deferência. Estamos ensinando ética como se fosse algo que, junto a direitos e privilégios, se compra. O Brasil vive uma esquizofrenia social - de um lado as classes abastadas reivindicam privilégios, de outro o Estado não garante os direitos às classes de menor poder aquisitivo.

A criminalidade envolvendo jovens deflagra a cultura perversa que sustenta o imaginário do brasileiro - as contravenções sociais dos políticos e dos pais os desobrigam a respeitar as regras da boa convivência. A autoridade sustenta-se no imaginário que os filhos (cidadãos) constroem do pai privado e do pai social. O pacto social só se opera por meio do pacto edípico. O outro não pode ser visto como possibilidade de ganho e desfrute, alguém que porta objeto ou possui algo que nos provoca inveja e desejo. Reivindicar respeito é recusar privilégios. É não disseminar revolta, é saber conquistar bens materiais sem provocar inveja, frustração. A riqueza é pernóstica quando persiste no meu próximo o sentimento de abuso, de ganho indevido, desonesto. Como não implantar no próximo o desejo de ocupar o lugar de privilegiado, daquele que se deu bem e, sem constrangimento, circula na ilegalidade? Na selva cínica, salve-se quem puder, a menos que os pais incluam, na mamadeira do filho, ética todo dia. Cinismo cordial é veneno que corrói a alma social.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

AMOR E BRILHO

Inez Lemos

O filme O brilho de uma paixão relata o romance ocorrido em 1819, entre o poeta John Keats e sua vizinha, a estudante de moda Fanny Brawne. Os dois jovens, embevecidos pela sedução, se entregam à paixão. O amor arrebatador e obsessivo é interrompido pela morte prematura de Keats, aos 25 anos. O filme prima pela forma delicada e sutil com que trata o sentimento entre os amantes. O amor é o personagem - o casal apenas se submete à ordem amorosa, que comanda o roteiro fiel às regras do coração. Nada soa como inverdade, simulação. Um amor que se inicia pelas entranhas da alma e segue invadindo tudo. Sentimento autoritário, que não deixa dúvida, tampouco escolha. Ou nos submetemos a ele ou somos por ele sucumbidos.

Contudo, O brilho de uma paixão nos carrega: mergulhamos na dor e nos tornamos cúmplices do sofrimento que se arrasta com a doença do poeta. Não é o sofrimento que nos tocou, incomodou, mas a beleza em conseguir retratar a intensidade que se apossa de Fanny, ao saber da morte do amado. Extasiados, trememos. O mundo, junto a ela, paralisou. Cenas como essas nos enchem de prazer. Toda vez que a arte é fiel à realidade e retrata o sentimento humano de forma aguda, deslumbramos. Significa que o grande personagem da vida é o sentimento. E a felicidade, essa coisa gostosa que nos transporta para as nuvens, passa pela sabedoria - saber provocar a densidade luminosa que cochila em todos nós.

Abandonamos a atmosfera idílica do século 19 e aterrissamos na era do amor instrumentalizado, desbotado. A ética amorosa que nos orienta é a da permissividade. Ela nos lança aos modismos descabidos e invade o campo antes reservado às intermitências do coração. Amor é coisa séria, vulcão que cospe - cão que vocifera e esbraveja de dor. O amor sempre foi tema que arrastou multidões. Sentimento universal, contraditório e imprevisível, impossível de ser planejado, instrumentalizado.

Nada mais broxante do que o discurso amoroso articulado pela ciência, propondo o apagamento do sujeito, controlando e determinando a emoção: “A ciência já sabe explicar por que alguns casais mantêm a atração sexual durante décadas” - frase veiculada por uma revista semanal. Outrora, o roteiro amoroso respeitava os mistérios da paixão. Segredos, fantasias e carícias vivenciadas na alcova. A alegria entre os enamorados estava na coragem de se despirem um diante do outro, em enfrentar temores e fracassos. Prazer por se sentirem únicos na construção de um enredo íntimo.

Tornou-se lugar comum depararmos com reportagens insistindo em ensinar como devemos nos portar na conquista afetiva. Os “workshops de paquera” ganharam adeptos. A ciência, ao invadir campos da vida humana, denuncia a fragilidade do sujeito diante de estratégias mercadológicas, que, de forma arrogante, lança seu discurso absoluto, infalível. A narrativa da ciência, ao se colocar como perfeita, denuncia autoritarismo e se compromete. A condição humana é esburacada, cheia de fendas. Somos muitos, habitamos uma legião complexa de dúvidas, culpas. Ao excluirmos o sujeito de sua história amorosa, “atribuindo à ativação de um circuito na área tegmentar ventral ao mesencéfalo”, desqualificamos os segredos da sedução. Impossível negar a importância da genética e da neurociência em tratamentos antes impensados. Contudo, permitir que ela mapeie o coração, como se fosse cérebro, classificando impulsos e desconsiderando o que, em cada um, mobiliza-se pelo outro, é admitir que nos transformemos em robôs.

As escolhas amorosas são de outra ordem, profetizou Drummond: “Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija”. O amor nos reserva nulidades, sentimentos despretensiosos e fantasias sem sentido. O amor é para ser vivido; e não explicado, classificado. Uma noite de amor não é uma aula de anatomia. Sensações que, antes de serem elucidadas, vulgarizadas, merecem ser contempladas. A ciência, ao intervir no corpo humano de forma absoluta, disseca a psiquê como um fóssil e despreza a dimensão erótica. Desafetar - subtrair o afeto que nos une ao outro. Como explicar o processo de assepsia e higienização das pulsões? O corpo vivente não é coisa para ser detetizado, estratificado, cientificizado.

“Os sem desejos – assexuados começam a sair do armário e, com a ajuda da internet, assumem a indiferença pelo sexo”. Eis outro sintoma registrado pela mídia e que merece reflexão. Jovens revelam não sentir desejo por sexo e trocam confidências por meio da Comunidade dos Assexuados. “Acho que sexo pode até ser legal, mas não é o principal. Se eu encontrasse caras que se contentassem apenas com afetos e carinhos, ficaria feliz para o resto da vida, porque, hoje em dia, está tudo tão sexualizado, tão carnal” - confessa um integrante da comunidade.

Podemos traçar paralelo entre o excesso de permissividade e a perda de libido? O fastio pelo sexo, acusado por alguns jovens, reflete cansaço, certo enjôo. O recato, a dúvida e o desconcerto que envolvem a experiência sexual intensa e sedutora devem ser sacramentados. É o sublime da vida - néctar que os deuses nos proporcionaram. Ao instrumentalizar o sexo, retiramos dele a substância que hidrata a alma. Quando comemos em demasia, sentimos aversão pelo alimento ingerido em excesso. A falta de entusiasmo e emoção dos jovens não é decorrente da troca de olhares sedutores, convites carinhosos, mas do lugar antropofágico que o sexo vem ocupando. Lembramos que o desejo se sustenta na ausência.

O inconsciente é aquilo que, na linguagem, surpreende, não mente - sai desavergonhadamente. Em que mundo o inconsciente se sustentará quando a sociedade exclui o sujeito de seus enunciados? Pobreza simbólica, empobrecimento do inconsciente. O objeto que causa desejo deve ser investigado quando queremos saber mais sobre as pessoas – sonhos, devaneios, fantasias.

A ciência se dirige ao consumidor para que ele demande objetos a serem consumidos. Este, ao consumir, encarna o escravo, aquele que obedece e se anula na obediência e submissão. Quando o objeto que causa desejo é destacado do sujeito, há o processo de assexualização. Todo sujeito é marcado por objetos – voz, olhar, gestos, seios. Rastros que cochilam no inconsciente e que orientam a sexualidade. Objetos perdidos que mobilizam o sujeito na busca por experiências de satisfação. Sem isso, o sujeito circula desprovido de referências amorosas - traços que vetorizam as escolhas.

O sujeito, quando aniquilado em sua particularidade e moldado pela lógica externa, opera uma demanda. Exilado de sua subjetividade, circula oco e disponível. Presa fácil a ser capturada pelos piratas da contemporaneidade. As novas formas de subjetivação agenciam o sujeito inserido nos novos conceitos de tempo, memória, distância, afeto, sexo, família e espaço. No ciberespaço, ele é estruturado na linguagem da tecnociência. Espaço virtual e preciso, comandado por autoridades invisíveis. Autoridade a que, atualmente, os jovens obedecem com sucesso. É aos comandos das máquinas que eles se submetem.

O sujeito cultuado pela tecnocultura opera e executa tarefas. Performático, gasta a libido diante de telas e se delicia entre mulheres virtuais. Os comandos são enunciados e deles se espera resultado, o produto. Já a enunciação se relaciona com o processo. O ato contínuo de manipular aparelhos provoca esvaziamento. O jovem que mergulha em experiências amorosas sem contato com o outro, sem retorno interior, é forte candidato ao estresse e à depressão. Exilado dos laços afetivos e desvinculados da enunciação, desconhece as intermitências do coração.

Amor é surpresa, algo que começa onde menos esperamos. Sentimento que irrompe, atravessa o escuro e nos encanta. Sabedoria no amor é treino, demanda habilidade, tramas e artimanhas. Entranhas que causam estranhamento. Sentimento desobediente, uterino, visceral. Amor e Eros não devem servir para muito mais senão iludir e encantar a alma mendiga. Ao reconhecer no outro fragmentos que nos são familiares, vislumbramos a possibilidade de um encontro fecundo, pleno. “Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. Transfiguro a realidade e então, outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria”, atesta Clarice Lispector.

O amor que satisfaz é o que cria, inventa, seduz, faz poesia e faz chorar. Entope-nos de ternura, nos tira do sério - mas nos deixa livres para voar e aterrissar. De posse da terra, conduzimos as contradições do coração. Tormento que ora dói, ora nos derrete de alegria. E nos enche de brilho.

Artigo publicado em 25/09/2010 no C. Pensar do EM.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

DEVASTAÇÃO NA WEB

Inez Lemos

O Brasil exibe imaginário social de país idílico onde aportaram Baco e Dionísio, expondo fragilidade e ineficácia na interdição paterna. Nesta terra, samba, mulata e sexo soam como palavras de ordem. Cenário que promete gozo para os que aqui aterrisam. Concordando ou não com os significantes que definem o Brasil pelo mundo afora, resta-nos investigar a nossa participação na construção de tal imaginário - e como, ao longo de nossa história, ele foi se solidificando.

A nossa herança de país onde tudo é permitido – paraíso do turismo sexual, terra sem interditos paternos para barrar os excessos – merece reflexão. Ao analisar a falta de interdição capaz de regulamentar o apetite pelo gozo, os excessos pulsionais, deparamos com atavismos e fantasias que fundam nossa mitologia. A tradição das mulheres, no carnaval ou fora dele, em escancararem o corpo, expondo intimidades, associa-nos à “abertura dos portos às nações amigas”.

Permissividade, corrupção, usurpação, exploração, desrespeito e servidão. Revisitando determinações históricas dos processos de subjetivação, deparamo-nos com o descaso pelo outro, pela res-pública (coisa pública). A subjetividade do brasileiro nos remete à era colonial, cuja construção se realizou com a função precípua de servir à metrópole - atender a desejos e pulsões sexuais da corte que aqui desembarcava. O ethos que nos funda é o da submissão escravocrata. Como explicar a disponibilidade feminina, a falta de escrúpulos em atender aos desejos e caprichos masculinos? Ou a loja de lingerie que lança sua liquidação com a frase: “Abaixamos as calças”? Como nos desculpar pelas mães que incentivam as filhas, ainda muito jovens, a fazerem intervenções no corpo como cirurgias plástica e lipoaspirações?

O papel que a sedução do corpo perfeito exerce em nossa sociedade revela traços de filiação e submissão aos imperativos do gozo. Filhos bastardos do colonizador - o explorador que aqui aportou e fez fortuna, engravidando índias e africanas. Frutos da relação falaciosa, pérfida - vítimas da própria sedução, beleza e charme. Agimos como mulher fácil que entrega o ouro para o primeiro bandido. Como num dos hits de carnaval - “Quem vai querer minha piriquita/ que há muito tempo estou doida para dar?” Promiscuidade, leviandade, autodesvalorização - significantes que atravessaram nossa história. Não é por outro motivo que os americanos estão de olho na Amazônia - floresta, ouro, sexo. Como explicar a dificuldade em interditar o desejo do outro? A recusa em mudar de posição e abandonar a senzala revela gozo em servir – relação senhor e escravo.

As campanhas de carnaval veiculadas pelo Ministério da Saúde gostam de espalhar pelo país outdoors com mensagem recomendando o uso de camisinhas: “Quem é bom de cama usa camisinha. Qual é a sua atitude na luta contra a Aids”? Será essa a melhor forma de prevenção da Aids? Incentivar o sexo, precocemente, tornou-se palavra de ordem. O que esperar de um país que convoca jovens e adolescentes à cama? O carnaval não deveria ser divulgado mais como festa nacional - apoteose ao samba e à nossa identidade musical - e menos como incentivo a vivências sexuais, antecipando impulsos e desejos?

Um trabalho sério de prevenção ocupa, durante todo o ano, agenda familiar, escolar e governamental, e não bombardeia cabeças apenas em época de festa. Ou o Brasil prefere se eternizar na posição de bordel do mundo - prostíbulo tropical que esbanja, além de violência, noitadas e orgias.

Além da música que oferece a “piriquita”, assistimos a meninas dançando coreografias eróticas em que jogam a virilha para frente, a bunda para trás, abrem as coxas e cantam: “créééu! créééu!” E seguem se oferecendo. Como esperar que o mundo tenha outro olhar sobre o país, com país aplaudindo a filha em danças sexualizadas e fantasiando os filhos de Bope – com direito coletes à prova de balas e caveira cruzada nas costas, símbolos do Batalhão de Operações Policiais Especiais?

A sexualidade humana é suporte e opera como escudo - pano de fundo para emoções e decepções afetivas. Ela expressa a nossa singularidade. Se a antecipamos e vulgarizamos, abrimos caminho para a devastação. Viver sobre o imperativo do gozo é disponibilizar a alma para o demônio – tentação sem freio. A vida humana não pode ser conduzida e influenciada por frases, músicas e fantasias descabidas. As palavras, como as imagens, contaminam o inconsciente e produzem efeito. Provocar a mente de crianças com mensagens e coreografias que banalizam o sexo, expô-las a questões inadequadas à idade são atos que trazem conseqüências negativas, desencadeando estímulos e provocando erotização precoce. Isso culmina em distúrbios hormonais e favorece a gravidez precoce.

A sexualidade humana se inicia quando nascemos. É processo longo, percurso que, outrora, era cheio de rituais e magias. Os encontros se iniciavam entre olhares cobiçosos que geralmente culminavam em namoro. Namorar, demorar - deixar a alma morar no outro. Amar é se desembrulhar para o outro. No meu tempo, as moças demoravam a se desembrulhar. A cada encontro, entregavam mais um pedacinho – segredos, temores e fracassos. A pressa moderna simplifica gestos e rituais que reverenciam o encontro sexual, banalizando emoções, sentimentos, sonhos e ilusões.

Pouca coisa deve ser pior para uma adolescente do que se ver grávida. A experiência da maternidade exige preparo de mulher madura - implica dedicação e muito trabalho. Contudo, não podemos cobrar isso de uma garota. A gravidez precoce evidencia a dificuldade dos pais em orientar e impor limites a filhas e filhos. A permissividade está solta - lan House, TV, internet, web, videolocadora. Estamos deseducando quando não regulamentamos o cotidiano que cerca a criançada. De propagandas que estimulam consumos e excessos aos telejornais, que exibem práticas de violência, corrupção, criminalidade.

Julgamos naturais as práticas sexuais precoces. Poucos conseguem segurar a turminha que cresceu se erotizando em programas televisivos, conversas com bonecas que namoram e freqüentam baladas. É comum depararmos com mães indagando se devem oferecer pílulas e preservativos à filha de 13 anos.

O Brasil, ao embarcar na lógica da tirania do prazer, ao julgar que todo desejo deve ser consumado, esquece que viver implica limites, frustrações. Educar implica vigilância constante. Os pais não podem atender os filhos em tudo. Permitir tudo é convocar o inferno, instalar o caos, a barbárie. Somente poderemos aspirar a um outro imaginário social quando não mais confundirmos liberdade com permissividade, alegria com leviandade, tesão com promiscuidade e inteligência com precocidade.

Educar exige firmeza, o que é diferente de rigidez. A sociedade que nos convoca ao gozo eterno coloca desafios aos pais o tempo todo. Como inserir o filho nos limites da lei? Muitos adolescentes que se exibem nos Twitcam não sabem que estão cometendo crimes informáticos, desconhecem o que está dentro ou fora da lei e revelam a forma ingênua e despreparada em que são educados.

Pais desavisados, pouco informados, mãos à obra. A condução de uma vida é tarefa para lá de difícil, função que requer determinação, disposição e coragem. A garota que experimenta muitas emoções de uma vez, sem processá-las, esquece-se de que sexualidade é devir, fardo a ser debulhado. Devastação é pular etapas e se despir sem cerimônia, parcimônia. Como as adolescentes que se exibem diante de webcams. Despreparadas e de forma despretensiosa, as meninas oferecem os seios e outras partes do corpo. Partes que eram íntimas agora se tornaram públicas. Publicizamos o privado e privatizamos o público. O carnaval inundou o país. O ano todo tem striptease na web. Banalizar, colonizar, se deixar usar e explorar.

Educar exige renúncia. Será a sexualidade feminina igual à masculina? Liberdade sexual significa transar com qualquer um? E a igualdade entre os sexos, é factível? A sexualidade feminina, decididamente, não é igual à masculina. A modernidade é conduzida, cada vez menos, por mitos, tradições e fantasias. Difunde saber científico que transforma desejo em imposições descabidas e insanas. As novas modalidades de gozo, os exageros no vivenciar a sexualidade nivelam as formas de usufruir do corpo e estabelecer laços sociais. O mercado não pode devastar sexualidades, impor formas de expressar sentimentos, unificar linguagens e suspiros que brotam de dentro. Isso, sim, é devastação. O que temos é adolescente desiludida com a possibilidade de ser agasalhada no amor. Entristecida, despe-se entre leões e gladiadores, como no colizeu romano.

Artigo publicado em 21/08/2010 no EM.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

AMOR NO MASCULINO

Inez Lemos

O filme Vida de casado conta histórias de infidelidade. Harry, o marido, apaixona-se por Kay e procura Richard, seu melhor amigo para comunicar a decisão de se separar. Harry se considera bem casado com Pat. Supondo que Pat não suportaria a separação, e por não querer vê-la infeliz, sofrendo e solitária, resolve matá-la. Pat, por sua vez, está apaixonada por um outro. Enquanto Harry arquiteta a morte da esposa, Richard resolve cortejar Kay, traindo o amigo apaixonado. Eles iniciam um romance e Kay comunica a Harry a decisão de encerrar o caso, atribuindo ao fato dele ser casado. Harry, desesperado, sai da casa da amante e corre para sua casa. Precisava impedir que a esposa ingerisse o veneno que lhe preparara. Chegando, a encontra viva, olha-a com compaixão e diz que a ama.

O filme é ode ao amor e ao casamento. Ele não perdoa, joga na tela toda a dificuldade que envolve sentimentos e tomada de decisões – assumir-se frente ao outro que o amor acabou. Numa análise simplista julgamos que o mote é a infidelidade. Fidelidade é conceito dialético. A quem devemos ser fiéis, ao nosso sentimento ou ao sentimento do outro? Contrariar o outro, deixar de corresponder aos sentimentos que ele nos dedica, não significa que estamos traindo, mas deixando de amá-lo. Não há nenhuma vantagem em mantermos um casamento infeliz. Compaixão é sentimento ambíguo e nos conduz a encruzilhadas. Ninguém permanece numa relação que não garante retorno, algum ganho. Muitas vezes, esse ganho é secundário, mantemos uma situação de compromisso com as neuroses. Uma forma de permanecer na mesmice, nos poupando de assumir escolhas, arcar com decisões e responsabilidades. A repetição revela parceria com a morte, um fundo de culpa. A culpa cristã de não “fazer o mal ao outro”. Se agirmos em desacordo com nossa dignidade, fazendo concessões, ficamos mal conosco e infligimos a ética do desejo.

Embora o filme coloque ambos os gêneros na mesma situação, a experiência clínica revela que, quando se trata de assumir posições, os homens apresentam maior dificuldade. Geralmente, quando um casal se separa, é a mulher que pede a separação. Historicamente, a infidelidade conjugal é maior do lado masculino, o que reforça a ‘cultura do escape’ ao qual o masculino está submetido. O imaginário masculino do amor é mais sexo e menos carinho. Muitos buscam no casamento mais que sexo, eles também querem aconchego e proteção - casa organizada, funcionando a todo vapor. Acredito que a maioria das mães, no Brasil, educa os filhos homens para dependerem da mulher. Primeiro, dependem das mães, depois, muitos contam com a boa vontade e paciência das esposas. É comum ver homens inteligentes, grandes profissionais em enrascadas, se atrapalhando quando necessitam desempenhar trabalhos domésticos.

Se recorrermos à história do Brasil, ao passado colonial, escravista e patriarcal, encontramos explicações para a cultura antropocêntrica. É o Brasil arcaico que insiste em não crescer, evoluir. Nos países avançados, quando o profissional de serviços domésticos são raros e caros, os homens assumem participação nos afazeres domésticos. Que vantagem há em educar os filhos totalmente dependentes? Não se trata de convocar homens e mulheres ao tanque e à cozinha, mas debater o quanto equivocamos ao não inseri-los na vida de dentro, intimidades e especificidades - sentido de parceria e companheirismo. O ambiente doméstico é um bom espaço para iniciar a criança no respeito pelo trabalho alheio, desalienando-o. Fora da cama, em casa, muitos homens agem como analfabetos. “Analfabetos funcionais do lar”. Gostam de permanecer na posição do “eterno filho da mamãe”. Nesse particular, Freud nos confirma: “não há amor mais intenso que o de uma mãe pelo filho homem”. Grosso modo, sem entrar em questões edipianas, constatamos que muitas mães não educam o filho para a vida amorosa. Pelo contrário, ela não vê com bons olhos a intrusa, essa ladra que roubará o filho querido – rivalidade feminina.

Numa separação, o que mais dói é a sensação de perda - sentimento difuso. Não temos consciência do que perdemos no “objeto perdido”. Entristecemos por nos ver privados da sensação de protegidos - ungidos pela promessa de amor que tanto nos confortava. Sofremos por perder a afeição pela pessoa amada, por ela não mais ocupar o lugar de prevalência em nosso coração. Por não sentirmos desejados, tampouco desejantes. Constatar que o amor acabou é se ver no deserto, jogado à própria sorte. Gostamos de nos iludir, criando justificativas para conservar algo que já se foi. Preferimos adoecer a abandonar o mesmo. O filme se debruça diante da recusa de nos destrincharmos para o outro. Muitos fogem, partem sem elaborar e acumulam repertórios de relações abortadas. Vão e carregam o mal-estar de se sentir órfão de um amor “que tanto amava”. Poucos, à vontade, deslizam na esteira de sentimentos. O que fracassa não é a relação, mas nós ao deixarmos de olhar para não nos ver lá, onde, junto ao amor, deixamos de fluir. Interrompemos uma história de amor, mas não interrompemos velhas neuroses - a obsessão da boa imagem, o gozo em escapar de críticas e restrições. Amar é desatar nós.

Fidelidade, medo de ficar só, culpa ou dificuldade de elaborar o que nos bole por dentro? Como escapar da miserabilidade humana que banaliza os sentimentos e prega o amor mercenário? Por que poucos se empenham na manutenção do encantamento? Atribuir apenas ao outro a responsabilidade pela felicidade é injusto. É muita pretensão julgar que, sozinhos, somos capazes de fazer o outro feliz. Antigamente, diante do altar, um prometia ao outro fazê-lo feliz. A melhor forma de acabar com o encanto é entrar numa relação e aceitar tamanha carga. A chance da felicidade a dois é tramada na cumplicidade. Sem disputas e competições, podemos até tocar um pedacinho do céu.

Saramago, escritor português e prêmio Nobel, viveu amor intenso com Pilar del Rio, jornalista espanhola. Na época, Saramago vivia só. Embora atormentado com os rumos do mundo atual, exemplificava “o homem bem em sua própria pele”. Expressão que ilustra o sujeito apaziguado, em harmonia com seus demônios. Geralmente, os escritores são pessoas inquietas com o jogo do poder, a lama oculta nos subterrâneos das instituições. Fedor sufocado em frascos dourados. Saramago escancarou feridas - sacras e profanas. Contudo, soube realizar a conexão entre vida de fora e vida de dentro. Debruçado sobre o mundo, reverenciou o amor. Não estabeleceu dicotomia, construiu a ponte da felicidade enlaçando escrita e vida íntima.

Saramago registrou nos relógios da casa a hora em que conheceu Pilar. Todos paralisados na “hora do amor” - quatro da tarde! Artifício que eternizou a emoção do primeiro encontro - instante mágico, misterioso, delicioso! Inscrever a sensação de felicidade, prolongar, ao máximo, a condição de feliz. É quando, sob o sentimento de grandeza, potenciamos o belo, o contentamento por gostar. “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter; ter deve ser a pior maneira de gostar”. Em linguagem poética, nos lembra o quão ridículo é confundir “gostar” com “possuir”.

Lamentar pela relação e pelo tempo em que, juntos, poderiam promover coisas valiosas. A sensação de que “algo se esvai sem justa causa” nos arrasa. Quando cada qual caminha díspares nas fantasias, é sofrimento que se espera. Saramago encontra em Pilar um lugar em que pudesse “ser”. A carne sente forte impulso em ser penetrada quando tocada fundo - algo cutuca o coração, mexe com as entranhas e desequilibra a libido. É a danação do desejo que chega e bota tudo de perna pro ar. O amor é a única tirania aceitável. Uma mulher de 35 anos se apaixona por um senhor de 63 anos. O que representa 28 anos de diferença quando os interesses são da mesma idade? Não existe amor desencontrado pela idade, existe amor que não se descobriu nas afinidades. Todos deveriam percorrer o caminho de dentro, ele oculta fiordes. Amor gestado no cimento das cidades, articulado e consumido no imediatismo do mercado, é amor frouxo e pouco suporta os trancos do coração.

Saramago metaforiza o homem que, embora idoso, não se envergonhou de continuar perseguindo o amor. Não se contentou com as migalhas de afeto que a vida lhe reservava. Lutou por muito mais. A grandiosidade do amor exige humildade e sabedoria. Como entrelaçar palavras e conjugar verbos de uma outra boca? Penetrar em sentimentos estrangeiros, diferentes concepções de vida e prazer? É o jogo do decifrar - debulhar o rosário da existência. Contentamento e alegria encontram um lugar no desejo. Saramago fez valer o desejo de felicidade, abandonou a arrogância e pediu ajuda a Pilar. Queria pular, com ela, os tocos da caminhada. Desvelar entraves, traumas e neuroses é preparar o caminho para o amor. Encontro sonhado e, muitas vezes, mal tratado.
Ocupamo-nos com os cabelos, o celular e o futebol, mas poucos se dedicam à aprendizagem. Como transitar melhor na vida intima e manejar as intermitências do coração? Amar, verbo intransitivo. Com Mário de Andrade descobrimos que “o amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores. Espirituais, pensava...De noite uma ópera de Wagner, Brahms”. Quão profundo e sério é convidar uma pessoa para o amor! Compartilhar uma trajetória, tecer um tempo, destilar emoções. Se nos bastamos e não queremos dividir o pão da vida com o outro, evitemos o verbo amar. Amor mísero é o que nos espera quando mergulhamos na cultura do escape. Quando o parceiro, desencantado, escolhe o benefício da morte ao desimpedir-se para outro amor. Forma pouco sábia de se iniciar um novo romance.

Artigo publicado no C. Pensar em 7/8/2010

quarta-feira, 28 de julho de 2010

FUTEBOL, PODER E MULHER

Inez Lemos

Eliza e Waris. Duas mulheres unidas pela violência. O filme A flor do deserto é a autobiografia da somali Waris Dirie, que, aos 3 anos foi circuncidada. Waris, infeliz com o que o futuro lhe reservava, foge após ser vendida, aos 13 anos, para um marido. Sob pele e osso, atravessa o deserto por dias e chega à Morgadishu, capital da Somália, onde passou a adolescência sem ser alfabetizada. Seguiu para Londres, onde trabalhou alguns anos como faxineira na embaixada da Somália e, posteriormente, num restaurante fast food, foi descoberta pelo fotógrafo Terry Donaldson, que a transforma numa modelo internacional. Essa é a história de uma mulher que passa grande parte de sua vida em busca de dignidade, afeto e amor. Waris ansiava em ser reconhecida como ser humano, merecedor de carinho e respeito. Construir uma história diferente das mulheres somalianas, quando é proibido ter prazer com o corpo, não escolhem seus maridos, tampouco podem deles discordar.

Waris e Eliza Samudio, duas mulheres marcadas pela violência. Waris sofreu uma intervenção radical no sexo impedindo-a de se sentir mulher. Eliza é punida até a morte pelo ex-amante por desejar ser mãe, criar o filho e construir um lar que nunca teve. Ambas foram feridas na sexualidade, no que o feminino tem de mais sagrado. A violência contra a mulher, aqui e no mundo, aponta para o quanto temos que caminhar na luta pela dignidade de se ter um corpo aberto para o amor. Um corpo que muitos homens confundem com buraco lúdico - lugar em que podem chegar e abusar. Como entender, na nossa cultura, o desrespeito e a violência contra a mulher, onde a cada duas horas uma é assassinada?

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, aprofunda os motivos que levam o brasileiro ser tão boa praça, cordial e permissivo. A cultura que nos define é a do “deixa disso”. A herança ibérica e o legado de uma ausência de organização social e de luta pelos direitos, exigindo respeito e solidariedade dos compatriotas e governantes, criaram uma mentalidade nos patrões de descaso, abuso e descompromisso para com aqueles que julgam inferiores. O brasileiro sofre de autoestima baixa, age como ressentido e se julga um fracassado quando não é rico e poderoso. E esquece que o fracasso, muitas vezes, não é do indivíduo e sim da sociedade. Vivemos a violência por sermos geradores de violência. A violência é o lixo que mais fede em nosso aterro sanitário.
Esperteza, cinismo, transgressão, imoralidade consentida, intimidade nas relações sociais, perversão. O que leva um jogador de futebol a se julgar no direito de matar a ex-amante? Qual a relação que existe entre a forma como fomos colonizados e a falta de pudor do brasileiro? Vivemos num mar de permissividade - as garotas adoram se despir e os homens, agredir. O caso do goleiro Bruno que, de acordo com a polícia, seqüestrou Eliza Samudio e mandou matá-la, exemplifica o imaginário masculino que se julga no direito de usar de violência para resolver questões pessoais com as mulheres.

A busca pelo gozo sem limites é um traço da vida social brasileira e que se evidencia em vários setores por meio do “jeitinho” - na educação permissiva quando pais e escolas condenam as crianças ao gozo, ao não imporem limites às crianças, na forma em que são praticados atos de corrupção e outros crimes, ostentando o uso indevido do poder. Nascemos da falta de um significante que simbolize interdição, uma ordem à qual todo o país estaria submetido, e que funcionasse como um organizador eficiente da vida em sociedade. As relações de amizade e favor, prestígio e poder, iniciaram-se nas capitanias hereditárias. E assim prosseguimos. Dinheiro, poder, sexo e violência sempre andaram juntos no paraíso tropical. Violência em sua forma mais ampla. Transgressão permitida - cinismo disfarçando privilégios consolidados no imaginário de uma elite poderosa. As relações de trabalho se misturam com as pessoais num clima de intimidade. A intimidade brasileira é um traço extremamente forte nas relações sociais, o que, por sua vez, acaba facilitando a violência. A aproximação precoce abre espaço para a agressão, quando todos se sentem à vontade para intervir na vida do outro, corpo e desejo.

Subjacente à sua fundação, o Brasil carrega a fantasia do mito de paraíso terrestre - filho bastardo de pai que nunca cumpriu com a função paterna e não interditou o gozo. O Éden que os europeus sonhavam - lugar para depredar sem culpa. Reserva libidinal do mundo. Todo o imaginário de praias, mulheres, sexo fácil e malandragem fixa-se na nossa identidade. A crise de valores éticos resulta do fato de os ideais morais não serem respeitados, colocando a transgressão no centro da dinâmica social. Vivemos a síndrome dos explorados e injustiçados, transgredimos normas e leis. Agimos como eternos ressentidos, insatisfeitos com o pai cruel e injusto, que nos deixou na “carência”. Somos o filho abandonado que tenta compensar os maus tratos. Enquanto não mudarmos a postura diante do pai abandônico e usurpador, enquanto não abandonarmos o lugar do filho desrespeitado e em desvantagem, vamos sempre criar mecanismos de compensação. Para que o quadro de violência mude, temos que sair da posição de inferior e recusar situações de privilégio. A ética na convivência social exige que o bem-estar individual transforme-se em um ideal coletivo.

E a história se repete. Eliza Samudio (sem julgar o fato), foi abandonada pela mãe aos 5 meses de idade, indo morar com o pai. Segundo uma amiga, Eliza sofria de carência. Carência aponta falta, falha na forma em que foi amamentada, acolhida no amor primordial - primeiras experiências de satisfação. Eliza é filha do Brasil que vemos na TV. Mulheres incentivando a negociar o corpo, ganhar a vida de forma fácil e rápida. Bruno, órfão de pais vivos, também não desfrutou do carinho dos pais, que o entregaram para a avó aos 3 meses. As histórias de violência geralmente acusam ruído na base afetiva – esgarçamento do quadro familiar. Histórias de abandono, maus tratos e abusos - geralmente, quem apanha, bate. E quem é abandonado pela mãe, se sente no direito de reproduzir situações de violência. Se uma mãe é capaz de abandonar um bebê, como esse, no futuro, não terá coragem de fazer igual ou pior? Pelo que consta, Bruno também entregou o filho a terceiros, à própria sorte. Eliza usou o corpo para conquistar Bruno, que representava garantia de amor. Eliza demandava mais que uma pensão, um lar - afeto e carinho para ela e o filho. Pouco lhe interessava se de forma inadequada. O objetivo era tentar compensar a dívida que a vida tinha para com ela, ao privá-la do amor materno. A busca incessante de amor na fantasia sexual feminina. Em sua obsessão, amou mais o amor que a realidade. Pouco lhe interessava se Bruno era casado ou se desejava, com ela, ter um filho. Busca no filho confirmação de que nunca mais sofreria de solidão. Filho representa companhia, casa cheia. Alguém que chega e rompe o sentimento de se saber só. Promessa de lua cheia e fim nas noites de trevas. Holofotes na vida e na alma. Eliza, ao recusar invisibilidade, reivindicava espetáculo.
Bruno se encaixa também no imaginário do transgressor, aquele que transgride a lei, desrespeita-a por se colocar acima dela. Num ato de volubilidade caprichosa, atua como perverso. Do lugar do poderoso e privilegiado pela fama e pelo dinheiro, se julga no direito de eliminar aquela que o incomodava. A postura de Bruno pode ser analisada dentro da subjetividade do futebol no Brasil, que exibe um comportamento chauvinista masculino, exemplificado na “lei da transgressão”. Muitos casos de violência e crime envolvendo o mundo do futebol reforçam a distância entre o judiciário e as práticas sociais. São as contradições entre o arcaico e o moderno. As ‘regras de exceção’ são parte integrante de nossa cultura e implica diversas estratégias. Essas práticas sociais, das quais o “jeitinho” faz parte, confrontam-se com as leis formais. O jeitinho que Bruno escolheu para resolver sua questão com Eliza acabou se confrontando com a lei. Deu azar, dessa vez ele falhou.

Em sociedades injustas e desiguais, vários são os motivos que leva o indivíduo a transgredir a lei – como resposta ao desamparo, quando o cidadão não vê seus direitos básicos assegurados, como objeto de punição legítima ao crime, ou de forma perversa, sobretudo pela elite. Mais que exigir punição aos que transgridem a lei, devemos protestar e exigir um código de ética. Ética, primeiro, se aprende em casa.

O Brasil da contradição, arcaico, racista e moderno, reflete na cabeça dos jogadores. Muitos são negros, oriundos de classe pobre e escolaridade precária. De repente, de garotos de periferia transformam-se em ídolos e se descontrolam meio a tanto poder, dinheiro e mulheres. É o país da corrupção e da contravenção, da desigualdade e do descrédito em que crueldade e violência se confundem com virtuosismo. O país dos salários baixos é o território que a elite do futebol pisa ao buscar parte de seus craques. Violência expressa revolta. Metaforiza o sentimento de abandono que o Brasil exerce em seu povo. Um povo que clama por atenção dos políticos despóticos - coronéis, empresários, gente que não conhece sua gente, nada sabe de pobre e vida miserável. Vida tramada na tristeza de todo dia. De nada resolve querer tampar o sol com a peneira. Modernizamos, mas continuamos atrasados, velhos na concepção de nação. Retrógrados no olhar sobre as mulheres - macheza e ignorância. Esporte e educação, uma dupla que rende bons frutos.

Artigo publicado no C. Pensar do jornal EM em 17/07/2010

terça-feira, 29 de junho de 2010

A SOLIDÃO DOS INTERNAUTAS

Inez Lemos

“Minha vida era só tristeza, eu era rejeitada na escola, os colegas zoavam, e, por não ser bonita, me chamavam de canhão. Um dia resolvi me produzir, fiz umas fotos sensuais e coloquei na internet. Consegui amigos, muitos interessados em me conhecer. Depois meus pais descobriram, e eu tive que apagar tudo, minha alegria acabou”. A fala de M, de 15 anos, nos ajuda a interrogar o que leva os jovens a aderirem, de forma cabal, aos sites de relacionamento. O mundo virtual funciona como um cabaré para os jovens e adolescentes. É onde eles se refugiam em conversas, confissões, expõem desejos - encontram os pares, se sentem amados, reconhecidos, notados.

O desabafo de muitos jovens e adolescentes giram em torno do quanto a vida dos adultos é, para eles, desinteressante. Muitos reclamam da falta de empenho dos pais em tentar compreendê-los. Mesmo sabendo que essa é uma tarefa difícil, muitos julgam um absurdo os pais não se esforçarem em ajudá-los a enfrentar as ciladas do mundo atual. A maioria acredita que a internet funciona como um oásis no deserto, ajudando-os a suportar a solidão e o isolamento. “Meu pai senta-se à mesa e só fala de negócios com minha mãe. Os papos deles são só coisas que envolvem dinheiro, ele nem percebe que eu estou ao seu lado nem pergunta o que estou estudando, se estou gostando da escola, é por isso que eu não falo mais nada de mim em casa, converso só com meus amigos”, confessa R, 17.

A sensação que tive, ao investigar o fascínio que o mundo virtual exerce entre os jovens e adolescentes, é que a internet opera como um reduto. Espaço onde eles se sentem vivos e importantes. E expressam revolta por se sentirem rejeitados pelos mais velhos. Alguns consideram a vida atual imprópria para educar filhos, uma vez que muitos pais julgam qualquer coisa mais empolgante que se dedicar aos jovens. “Eu sei que o meu papai podia ficar comigo, sair, jogar bola, mas ele sempre preferia os amigos. E minha mãe não largava as novelas dela por nada”, desabafa L, 16. Será por isso que agora eles abominam a companhia dos pais? Significa que cumprir com a função paterna e materna, há muito tempo deixou de ocupar um lugar no desejo dos pais?

O jovem se move num mundo que não quer saber dele senão como consumidor. Não o quer enquanto sujeito de desejo e conflitos, frustrações e sofrimento. São alvos de atenção quando se submetem às seduções de consumo – cordeiros que seguem o cortejo triunfal dos bem-sucedidos. Quando não nos responsabilizamos pelo nosso desejo, nos transformamos num corpo morto, sem voz e vontade própria. Muitos têm consciência que habitam um mundo de vozes inaudíveis e olhares congelados numa só direção. A harmonia interior se expressa sobre um fundo de discordância, é conquista que implica superar confrontos. Discordar é visto como briga, desavença. Muitos pais cobram uma educação focada, operacional - não querem perder tempo com debates sobre ética, cidadania. Tudo deve ser acordado de forma rápida, sem elaborações.

Vivemos a sociedade da voracidade - que se pauta muito mais por valores privados que por valores públicos. Na escola, o filho tem que produzir e responder às expectativas de aprendizagem. Caso esteja destoando da turma, deve ser logo diagnosticado, medicado. Compactuamos com as regras da era cibernética. Aderimos aos modismos e julgamos mais fácil aceitar que contestar. “Crianças de 2 anos já usam computadores em escolas”. A mídia nos avisa que algumas escolas de São Paulo, no intuito de ganhar pontos em relação às outras, estão antecipando o ensino de informática. Alguns pais, por necessidade de participar da horda, sem interrogar, mergulham na obediência voluntária e aderem às insanidades da tecnocultura. Abrem mão da autonomia e do direito de defender convicções. Lembramos que a passividade circula no campo da pulsão de morte. Há uma moral fundamentada na razão humana que está se esvaindo.

Permissividade rima com preguiça - permitir é mais fácil que lutar e exigir. Submeter-se às necessidades criadas pelo mercado, aceitando que imponha hábitos e rituais. Concordar que os objetos adquiram dimensão bem maior que as relações inter-humanas - que o cachorro ocupe lugar de prevalência em relação ao filho. Defender que o período que gasto com vaidades legitime o tempo que falta à minha família. Estamos todos justificados diante das exigências do momento. Está tudo certo, apenas estamos roubando da criança o direito de ser inserida em mediações criativas, que estimulam o fazer por si e a autonomia. Brincar com os filhos implica envolvimento, interação e contribui no amadurecimento da relação, fortalecendo o laço afetivo. Enquanto a submissão às determinações de fora produz sentimento de inutilidade e abandono - base doentia para a vida. A modernidade põe em cena o desamparo. É desumano, mas é fashion.

A solidão dos jovens deve ser investigada dentro do rol de exigências que o mundo atual cobra deles. Mal a criança nasce, o empanturramos de expectativas, palavras de ordem. Tornou-se comum ouvir que os profissionais devem atender às expectativas do mercado. Será que os profissionais competentes deveriam se submeter ao mercado tal qual ele exige? Muitos, embora bem sucedidos profissionalmente, são imaturos e despreparados diante dos sofrimentos e desafios da vida. Vida íntima, vida afetiva. Muitas são as vidas que nos enlaçam. Viver é também se aventurar pelos chamados da alma e debruçar sobre os apelos do coração, imprimindo nossa marca no mundo - do trabalho e das relações afetivas. Senão é seguir plano de metas e cumprir agenda externa e estranha.

Ao preservar a singularidade, devemos colocar um ponto de basta na voracidade do mercado, que, sem pudor, invade os espaços privados, determina e define nossos passos. Não há mais lugar para o espontâneo - o cerimonial decide! Vida planejada, sentimentos controlados e desencontrados. Outrora éramos mais avacalhados, mas havia naturalidade nos gestos e espontaneidade nas relações. Viver era mais verdadeiro. Bebíamos mais da fonte bruta, autêntica. Na medida em que nos tornarmos prisioneiros de demandas alheias, nos alienamos da condição humana. É a mercadoria que se revela na figura do destino inexorável, é ter ou ter. Ambicionar, adquirir, acumular.

O indivíduo tributário do sentimento de despertencimento, autocentrado, cresce na valorização narcísica e na negação de símbolos e atavismos. A trajetória do individualista difere da trajetória do sujeito que cultua raízes e valoriza vínculos e sentimentos como fundamento do sentido da vida. Autonomia é diferente de independência. O sujeito autônomo constrói o seu percurso na interação com o outro e com o mundo que o cerca. O individualista segue um roteiro independente do outro, seu compromisso é apenas com ele. O outro é apenas um serviçal.

A maioria dos jovens não acredita que possa criar alternativas distantes do mal-estar reproduzido na lógica da linha montagem industrial, existência coisificada e marginalizada. Crueldade sempre existiu, mas há uma crueldade refinada no mundo ultraliberal que enfatiza a técnica pela técnica. Falo da servidão sutil e disfarçada às quais muitos jovens estão se submetendo. Confinados diante de uma máquina, passam horas entretidos numa inclusão virtual e imaginária. Será que as novas formas de sociabilidade geram novas sensibilidades? Será que os amigos virtuais vão se interessar pelos nossos problemas e nos fazer companhia nas horas difíceis? Podemos confiar nas amizades que nascem na tela, tal qual as que brotam numa mesa de bar, no olho a olho, tendo como parceira o desejo da companhia - testemunho da paixão que habita os homens ávidos por ligações viscerais? Amizade é algo que não se propõe, acontece. Percebemos uma paranóia, uma obsessão em vasculhar a vida do outro (amigo ou namorado), aproveitar do mecanismo tecnológico e por em cena a maledicência. Gozo em invadir privacidades. Avançamos em relação às fofoqueiras, que se debruçavam nas janelas para se deliciar com a vida alheia? Esse lamento não passa de um delírio saudosista ou o mundo que estamos construindo para os jovens está mesmo estranho?

Como acreditar mais nos sentimentos que nos signos de poder, fazendo-se merecedor da dedicação dos pais na difícil travessia para o mundo adulto? Crescer longe da mistificação criada pela publicidade, da fascinação pela ostentação que garante ao sujeito respeito? Fugir às determinações: “Escolha uma profissão que dá dinheiro, esse papo de fazer o que gosta é furado”. Lançados na fogueira narcísica dos pais, submetem-se aos mecanismos de compensação de insatisfações e ressentimentos. Pressionados, se demitem da família e buscam abrigo nas tribos virtuais - antídoto contra a solidão.

[1] Artigo publicado no C. Pensar em 26/06/2010

quinta-feira, 17 de junho de 2010

QUAL O VALOR DO CONHECIMENTO?

Eliane Dantas

“Fixe o pensamento apenas nos escritos, pois já vi pessoas serem salvas por seu trabalho. Entenda, não há nada mais genial que os escritos. São como um barco sobre a água. Deixe-me fazê-lo amar a escrita mais que a sua mãe. Permita-me introduzir sua beleza a seus olhos, pois ela é mais importante que qualquer outro trabalho. Não há o que se compare em todo o mundo”. Esta fala ocorreu 4 mil anos atrás, entre o burocrata egípcio Dua-Queti e seu filho quando navegavam pelo Nilo em direção a uma escola de escribas, segundo o livro A História da Leitura, de Steven Roger Fischer.

Antes que mães e pais fiquem bravos e desistam de continuar esta leitura, não quero entrar na discussão sobre amar a palavra mais do que a uma mãe. O que disse o burocrata pode ter sido uma força de expressão. De todo modo, é importante lembrar que, naquela época, a comunicação se dava principalmente pela oralidade, a escrita era privilégio de poucos, principalmente dos homens, e era um fator que definia poder e status.

O que me interessa na fala daquele burocrata é a oportunidade de pensarmos na relação das pessoas com o conhecimento. Até que ponto seriam as falas e ações de adultos também responsáveis pelo desinteresse de crianças e jovens pelo saber? De que forma pais definem escola para seus filhos? O que esperam dela?

É bom lembrarmos que escola existe para o indivíduo aprender a servir-se de seu próprio intelecto, colocar à prova seu pensamento, construir a liberdade que vem com o conhecimento. Quanto mais conhecemos, mais livres somos, mais agiremos por escolhas e não porque os “oráculos da verdade” – que podem ser um professor, um pastor, um governante, um militar – nos dizem o que fazer. A multidão que não pensa, alerta Kant, fica como animais domésticos confinados em seus currais com medo dos riscos do caminhar. “Mas ao preço de alguma queda, o indivíduo pode aprender a caminhar”, alerta o filósofo.

O fato é que, no Brasil, o conhecimento não está entre os artigos de primeira necessidade. A média de leitura dos brasileiros é de dois livros por ano, sintoma de quem não quer sair da menoridade (termo cunhado por Kant), ou seja, pensar por si próprio.

Na história do Brasil, o conhecimento jamais foi considerado prioridade. A primeira universidade do país só chegou com Dom João VI. Na Europa, séculos antes. Nos EUA, ainda no século XVII. É comum ouvir que tal sujeito pode ficar tranqüilo porque tem QI, ou seja, “quem indica”. Se preferirem rude clareza, tem pistolão! E onde fica o mérito? Aqui, muitas vezes, prevalece a lei de Gerson, que prega como desejável “levar vantagem em tudo, certo?”. Então para que estudar? Também se pode traçar um caminho mais curto, ir à Europa e tomar um banho de cultura! Não é assim que alguns pensam que irão conquistar conhecimento?

A socióloga Silvana Seabra, falando de sua experiência como professora nos EUA, diz nunca ter sido tão respeitada. Caso o aluno não fosse à aula, mandava email justificando a falta e pedindo desculpas. Em Belo Horizonte, um aluno agrediu uma professora e foi ela quem mudou de escola.
Então, o que podemos fazer para colocar o conhecimento no lugar de importância que ele merece e precisa? Os desafios são muitos, a resposta não é única, a trajetória é longa. Mas todos temos de buscar esse caminho ou a escola não encontrará o sentido que precisa. O discurso público e privado da “escola de qualidade” passa necessariamente pela reverência ao conhecimento.

domingo, 6 de junho de 2010

DESESPERANÇA E DOMINAÇÃO

Inez lemos

O novo estado do capitalismo ao qual nos submetemos desconstrói as possibilidades de simbolização. As relações sociais e mercadológicas se estabelecem fora do campo simbólico. Quais as conseqüências de se viver num mundo cujo valor simbólico é desmantelado em função do simples e neutro valor monetário? Quais os efeitos de dessimbolizar a vida e desvincular o dinheiro da dimensão subjetiva, simbólica e afetiva? Quando nada mais interessa, quando desconsideramos questões que ordenam a moral e a tradição e conferem às relações e aos objetos transcendência, abrimos espaço para a livre circulação da mercadoria. As trocas mercadológicas provocam a dessimbolização do mundo. Com isso, nos parafusamos numa rede de dominação, circunscrita não mais ao simbólico, mas ao real. É quando a vida passa a ser regida pela lógica do custo/benefício.

O novo sujeito, o homem que está se estruturando dentro da nova economia psíquica, sem recalque e desprezando o passado, mergulha na cultura da perversão. É a partir desse novo estatuto do objeto, da supervalorização da mercadoria, que devemos analisar episódios de violência envolvendo jovens e adolescentes. O novo sujeito se distancia cada vez mais do sujeito engendrado no sentido filosófico e psíquico do termo. A morte do simbólico enterra o sujeito kantiano junto ao sujeito freudiano. Distanciar da dimensão transcendental, desconsiderar as multiplicidades de sensações e sentimentos, negar as experiências, é acreditar num projeto existencial estruturado apenas no real da mercadoria, no real da vida. A filosofia que se estabeleceu na síntese da experiência e do entendimento refundava uma nova metafísica crítica. Vencido o sono dogmático, caímos na ilusão do racionalismo puro e simplista. Hoje, padecemos de excesso de técnica, de espírito funcional, operacional. O mundo que se apresenta às crianças é desprovido de sentido transcendental - repertório objetivo e científico arquitetado na razão mercadológica.

A lógica que orienta o novo sujeito é a do homem biológico. Vivemos a supervalorização do diagnóstico. Ao tratarmos o sofrimento humano, melhor ainda é provocar no sujeito o desejo de investigar o que o faz sofrer – jogar luz nos incômodos. Deixar falar o corpo erótico, vivente e vivido, que hoje emudeceu, desapareceu! Quando experiência e desejo seguem dissociados e a técnica reina absoluta, destruímos as possibilidades de explorar fracassos e conflitos. Ilusão acreditar que, castrando a palavra, conquistamos o apaziguamento. Assistimos à morte do sujeito forjado nos pressupostos da filosofia moderna e nas teorias orientadas nas manifestações do inconsciente – sonhos, atos falhos, chistes. É no espaço deixado pela morte do simbólico – dos totens e dos ideais do eu - que se embrenhou o mercado. A ausência de interdição favorece e expande as passagens ao ato. O que freia as pulsões é o recalque. Sem Pai e sem recalque, o que temos é um sujeito sem culpa, livre pra agir acima do bem e do mal. É quando vale tudo - de pedofilia a estrupos em série.

A sociedade que opera no real recusa o sujeito crítico e funda o sujeito do ato, que manifesta a insatisfação atuando - batendo, matando, chutando, zoando. Cyberbullying, prostituição virtual, esses e outros sintomas revelam um vazio de referência, um futuro morto. O Pai, lugar simbólico, funciona como vetor, é princípio de anterioridade. É ele que funda, no sujeito, a lei e o prepara para viver em sociedade. O que chamamos de Pai é um lugar que simboliza, para a criança, interdição. É quem educa ou cumpre a função paterna – mãe, tios, avós. À escola cabe reforçar os princípios educativos. Quando a criança chega à escola sem os princípios de anterioridade, estabelece-se o caos – violência, agressões, bullying. É um engodo acreditar que podemos prescindir da repressão ao educar filhos. Hoje, multiplicam-se os espaços em que a criança reina livre de modelos (ideal de eu). Mundo sem referencia e sem lei engendra sujeito sem supereu, auto-referencial. É quando o filho não escuta os pais e o aluno não dá a mínima para a escola e professores.

Como analisar os crimes cometidos por alunos, nas escolas, contra professores e colegas? As crianças, quando chegam à escola, chegam atravessadas de cultura midiática, empanturradas de mensagens televisivas. O tempo que era da família é despendido diante de uma tela em que a criança é contaminada por imagens de violência e inserida no mundo do consumo. A violência na TV é diferente da violência das histórias infantis, que chegavam aos ouvidos dos bebês pela voz das mães ou das avós. Há uma diferença significativa do imaginário de maldade enunciado pelo lobo mau e o universo realista dos seriados infantis, ou dos jornais e novelas – lixo televisivo ao qual muitas crianças são expostas. O resultado é uma geração forjada mais na cultura do consumo que na família, lugar por excelência de transmissão de valores.
A autoridade é transmitida no processo geracional. Instituir o jovem responsável, consciente de deus deveres e direitos, eis o desafio de uma sociedade que se institui na negação geracional, na auto-referencia. Os pós-identitários, sem antecedentes, desamparados e erigidos como “donos da verdade”, inudam as escolas de problemas, dificultando o processo educativo e comprometendo o bom funcionamento das instituições públicas e privadas. Como uma geração vai garantir a educação da outra? Várias identidades num mesmo corpo, pluralidade de opções, campo aberto para desejar tudo - é o mundo do excesso no qual estamos confinando os jovens. Muita mensagem e pouca metáfora paterna. Quando a metáfora de autoridade fracassa, emerge a selvageria - pulsões destrutivas e de morte. A ausência de interdição é pior que a ausência de escolaridade - esta ainda pode ser adquirida posteriormente, enquanto a delinqüência dificilmente é corrigida quando a lei não é internalizada desde cedo.

Os jovens estão sendo produzidos para resistir à relação de sentido, para escapar à elaboração discursiva e crítica. Sem Outro, eles se estruturam numa liberdade falsa, inconsistente - escravos que aceitam a servidão a que o mundo da homogeneidade vazia os condenou. A dominação atual revela o desprezo dos dominadores pela massa obediente. Só é possível dominar o outro quando desprezamos aquele que deverá se submeter a nós. A ausência de resistência, de pensamento crítico, compromete o laço social, o mundo das relações afetivas e a qualidade de vida – amigos, profissão, relações amorosas. Quando não somos nós que orientamos nossas ações, agimos dessubstancializados e dessimbolizados - distantes do lugar que confere pertencimento e filiação. A violência pode ser vista como efeito do descaso - emancipação do Outro, auto-gestão do eu. É da ordem do insuportável, para um adolescente, se sentir solto, desvinculado de uma rede de referencias e significantes que lhe conferem direção. O desespero de muitos jovens exprime impotência diante dos desafios da vida, dificuldade de tomar decisões, desejo de reconhecimento.

Como resistir à paixão triste, ao sentimento de impotência ao enfrentar os inimigos que nos afastam de nosso eixo identitário? Toda intervenção que nos chega de fora e que não exige de nós posicionamento, que dispensa nossa participação no processo, representa perigo! Cautela diante dos tratamentos que prescindem da palavra e oferecem resultados imediatos. Mediar, não adiar, elaborar. Enfrentar, desvelar - tirar o véu da dissimulação, do escape. Não querer ouvir o sofrimento do outro, não se interessar por seu grito interno é um dos maiores pecados que a modernidade já engendrou. Ao tratarmos depressão, bipolaridade ou outros transtornos somente com medicamentos, compactuamos com o apagamento do corpo erótico - que chora, berra e protesta contra o deserto ao qual está submetido. É mais rentável apostar na manutenção da doença do que na saúde dos portadores de sofrimento psíquico. Quando a química provoca no sujeito a ilusão de onipotência, ela o enreda na impotência. O jovem deprimido não enfrenta o Outro. Nada mais desesperador, para quem deveria ser encorajado a acreditar em seus sonhos, que se render enfraquecido e desacreditado de si. Desalento é se sentir vivo num corpo morto, desprezado, isolado e dominado pelo discurso absoluto da ciência.

Como se nomear e se subjetivar - agir segundo as próprias convicções? Elaborar perguntas como quem eu sou, o que desejo da vida, tornou-se despropósito! A singularidade é tramada entre amores, desamores e fracassos. Como enfrentar a peleja da vida? Sem antecedência, sem que os adultos assumam a responsabilidade do mundo no qual colocaram os filhos, dificilmente avançaremos no combate à violência. Primeiro, devemos saber que filhos queremos deixar no mundo, para, então, repensar que mundo queremos deixar aos filhos. Desesperança queima o tecido da vida - esperança de cumplicidade. Parceira mortífera.

Artigo publicado no Caderno Pensar em 29/05/2010.

DESESPERANÇA E DOMINAÇÃO

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A POÉTICA DO SAMBA

Inez Lemos

Tornou-se lugar comum nos estarrecermos diante de notícias como: “estudo inédito da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) revela que a família brasileira oferece alimentos ricos em gordura, açúcar, sal, corantes e outros aditivos alimentares para bebês com quatro meses de idade”. “Magreza excessiva domina passarelas”. “Para as muito vaidosas que ainda não completaram 12 anos, a ida semanal ao salão é só o básico. Elas também mudam o formato dos dentes, fazem drenagem linfática e até se internam em spa para perder peso”. “No limite do consumo: adolescentes das classes C, D, e E têm obsessão por roupas de marca e celulares. Pais se endividam e de desdobram para atender os filhos, que fazem de tudo pelo objeto de desejo”. “Anabolizantes põem vida dos jovens em risco”.

O movimento histórico que radicaliza na tendência de transformar o ser humano em objeto, nos assusta. O declínio da perspectiva subjetiva e filosófica da condição humana nos conduz a buscar abrigo nos objetos fetiches – modismos, consumo, medicação, estética. O “homem novo” evita paixões. Desencantado, comemora o triunfo da vida artificial. Alienado no espírito científico que orienta sua vida, esquece de questionar seu tempo e suas narrativas. O triunfo do banal e do pensamento único engendra novas alienações e novas formas de opressão, atrofiando iniciativas revolucionárias. O retrocesso das matrizes teóricas, como filosofia e psicanálise, reforça a crença de que toda revolta, toda voz discordante seria impossível. Contudo, como não aderir aos fetiches que triunfam – grande senhor que nos cega e emburrece?

Como explicar posturas insanas como as de mães que alimentam seus bebês com lasanha congelada, miojo, refrigerante, batata chips e chocolate? Outras que se submetem aos rompantes de vaidade das filhas, vestindo-as como mulheres e concordando que freqüentem salões de beleza? É comum ouvir mães, diante de filhos sem limites e indisciplinados: “eu não sei mais o que fazer com ele, me esforço e dou tudo que ele pede e nem assim ele me obedece”.
Como repensar essa pletora consumista que nos encurrala e nos afasta da essência da vida? Onde estão os corações puros habitados pelo gosto das coisas simples e espontâneas? Almas poéticas que brotam das conversas despretensiosas? Há um enredo da vida que surge do trivial - puro prazer de cantar a emoção do mundo. Aonde se esconderam os filósofos das madrugadas, sem diploma e cheios de sabedoria? Esse ano, Adoniran Barbosa e Noel Rosa completariam 100 anos. Adoniram foi um sambista fundamental na formação da identidade musical de São Paulo e do Brasil. Fez poesia com a pobreza - interpretava a miséria com o coração. Suas músicas revelam, numa melancolia disfarçada, a realidade e os sintomas da vida humana - o amor materno pelo filho único “que não pode perder o trem das onze, pois a mãe não dorme enquanto ele não chegar”. Comicidade e tragédia, juntas, enfrentavam ressentimentos e decepções. Éramos conduzidos, junto aos poetas das madrugadas, pela filosofia do samba - verdade que se escondia na alma de gente comum interpretando o sentimento do mundo. Hoje, a juventude é comandada por falsos profetas, fetiches e feitiços devastadores, os Big Brothers que cantam o silicone, a barriga tanquinho e a bundinha rígida. Adoniran musicou a vida do Brás e do Bexiga e que não seduz mais ninguém. Quem se interessa pela saudade da maloca, pelo torresmo à milanesa ou pelo viaduto Santa Ifigênia?

Ao desprezarmos a simplicidade e sua riqueza simbólica, esquecemos que não se aprende samba na escola. Noel Rosa cantou o feitiço da vida - rivalidades, ciúmes, solidão e saudade. Mergulhou nas entrelinhas do dia a dia de Vila Izabel. Lamento ou saudosismo? O que nos faz escrever sobre eles, poetas do acaso? Pesar por ver a vida se escorrendo como enxurrada, banalizada e mercadorizada? O mundo que desconsidera a magia dos poetas da noite se perde na ausência de emoção. Noel, ao ver o sucesso de Festa no Céu, atesta: “Havia emoção – havia originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz alvoroço dentro de mim”. Noel reverenciou a poética das ruas, o lirismo e a alma da cidade. Queria que seus ritmos eletrizassem os músculos e influíssem decisivamente no movimento das multidões.

Adoniran e Noel morreram pobres, não construíram fortuna, mas deixaram um legado cultural digno de ser comemorado 100 anos depois. Quais as conseqüências de afastarmos os filhos dos sentimentos que regem a vida? Qual a implicação em desprezar a lógica do coração em função da lógica da mídia e do mercado - tratar sofrimento e tristeza apenas com remédios, desprezando o desejo de seguir um roteiro próprio? Adoniran, um andarilho que percorria a cidade com seu violão. Sua espada era a música e com ela venceria a batalha da sobrevivência. Não se envergonhava da infância pobre, das dificuldades enfrentadas para impor sua música e estilo e conquistar autonomia sobre seu percurso. Viver era bem mais que pagar contas e ter o que comer. Era se lambuzar de versos e metáforas - significantes que contornavam emoções e frustrações. Nada se compara ao prazer de poder forjar a vida com a própria mente.

Como investigar a depressão e o tédio dos que se atolam nas drogas ou buscam na ilusão do corpo perfeito saídas para suas vidas? Atribuir a compreensão do mundo à lógica racional, recusar o trabalho de desvendar misterios e desatar nós, acreditar apenas na lógica químico-biológica, é mergulho no desespero e na insatisfação. Reduzir as tragédias da vida numa simples molécula, desconsiderar os trabalhos dos sociólogos, antropólogos e historiadores, é perpetuar no obscurantismo. Consideramos retrógrados os que mergulham nos incômodos e investiga o fracasso, aquilo que não vai bem. A gênese do comportamento humano é analisada numa perspectiva positivista e neurocientífica. Reduzimos tudo à genética e à biologia: depressão, bipolaridade, homossexualidade. O legado de Freud, junto à filosofia kantiana, é descartado – ambos oriundos do pensamento crítico e libertário.

Qual a importância de visitarmos teorias que inauguraram o primado do sujeito habitado pelo saber de seu inconsciente, pela consciência dos sintomas – medos, fracassos, inibições e angústias? Os sucessos da farmacologia enterram o homem freudiano em sua dimensão intersubjetiva e histórica. O boêmio transformou-se no drogadito. O repertório do sujeito social, o inconsciente do poeta, sambista que cantava os sintomas circundantes reduziu-se à “genéticabiofisiológica”. Sabemos que não se aprende samba nas drogarias e nos shoppings - tampouco assistindo Big Brother e se extasiando com o gozo dos medíocres.

Qual o sentido de evocar Noel e Adoniram 100 anos depois? Talvez busquemos na densidade emocional da poética do samba um sinal de esperança, algo que nos entusiasme e restitua a crença no amanhã. E nos aponte luz, possibilidades de saídas do túnel - noite de trevas que nos espreita e amedronta. O terror é filho do desconhecido – descrença e desesperança. Vivemos aterrorizados quando, sem perspectivas, desacreditamos de nossa capacidade de resistir, de contrapor. Tragédia é se submeter por falta de opção e proposta. Opressão é aceitar as ordens impostas por um estranho poderoso que chega e nos sufoca - ilude e cega. Cegueira é quando vemos o que não existe e acreditamos na inconsistência. A vida forjada na razão moderna prefere robô à gente - qualquer máscara lhe cai bem. Quem somos nessa noite de mascarados? Qual face nos representa? Qual roupa nos veste?

“Fiz de mim o que não soube/E o que podia fazer de mim não o fiz/ O dominó que vesti era errado/ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/Estava pegada à cara/Quando a tirei e me vi no espelho/Já tinha envelhecido”. Fernando Pessoa escancara a hipocrisia dos tempos modernos, que, ao fazer das tripas seduções, nos enoda de ilusão. A máscara da moda são os escapes pelo corpo. Subterfúgios que nos aprisionam em castelos virtuais. Importa o gozo da imagem eternizada no vídeo, longe do espírito que perfumava os instantes de poesia, que para Noel, constituía numa verdadeira fonte de beleza.

Com que corpo eu vou, se tudo em mim me desagrada? Nada irá nos agradar quando circulamos no discurso da perfeição. Nunca vislumbraremos saídas se não enfrentarmos o próprio corpo. Sem os poetas, nos resta vasculharmos entranhas e descobrir verdades que religião nenhuma nos ensina. Tampouco as encontraremos nas drogarias. E olha que boemia revela mais que academias. Samba é epifania, fantasia que acolhe e cumplicidade que consola. Revisitar os velhos sambistas é resistir ao feitiço banal. Perversão é usar a competência para desiludir almas famintas - existência desprovida de sentido. Ilusão vazia.

Artigo publicado em 3/04/2010 no caderno Pensar do jornal Estado de Minas