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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fantasiar,brincar e cozinhar

Inez Lemos

No Brasil, o marketing direcionado para crianças não é regulamentado -regulamentar é diferente que censurar. Muitos países proíbem veicular propagandas nos intervalos de programação infantil. Aqui, as tentativas governamentais que ocorreram nesse sentido fracassaram. Essa é uma briga que deve ser travada com o envolvimento da sociedade civil. Se vamos às ruas para defender outros interesses, por que não denunciamos mais esse abuso? Conscientes do desastre que as propagandas provocam nas crianças - ao induzir neurônios a pensar o mundo pela lógica do consumo -, pais e educadores deveriam iniciar um movimento exigindo ética das autoridades e agências de publicidade.

A linguagem contemporânea que estrutura o sujeito do inconsciente é a do adquirir, exibir e ostentar. A idéia de felicidade na qual inserimos as crianças se distancia do ideal de família, quando essas conservavam valores e traços identificatórios – a lasanha da avó e a feijoada da mãe. Predomina o ideal disseminado por Ronald McDonald - que gosta de afirmar que não vende sanduíches, mas alegria, fraternidade, diversão e confiança. Susan Linn em Crianças do consumo: a infância roubada informa: “Em 1990, uma pesquisa com crianças de oito anos mostrou que, quando lhes perguntava: “com quem vocês gostariam de sair para comer”? Pais, professores e avós ficavam todos atrás de Ronald McDonald e do Tigre Tony. Mais da metade das crianças que participaram da pesquisa na Austrália achava que era Ronald quem mais sabia o que as crianças deveriam comer”.

Interessa ao mundo da publicidade explorar a infância. Bebês não protestam e crianças são influenciadas e exigem o que determina a propaganda - molestam os pais por um McLanche Feliz. Encurtar a infância é conferir a ela o estatuto de consumidor. Muitas famílias acabam confundindo precocidade com maturidade ou inteligência. Não percebem a diferença entre demandar produtos já viciados com escolhas maduras e direcionadas pelo desejo. Muitas mães, diante da criança intransigente e bombardeada pela mídia, exclamam: “meu filho já sabe o que quer”. A trajetória do desejo iniciava-se nas refeições familiares - a convivência entre galinhada e couve fundou imagens que nos prepararam para os saltos do mundo. Diferente de ser marcado por mensagens carregadas por emoções duvidosas. Um cenário enfeitiçado de guloseimas e colesteróis, em caixinhas de surpresas, embala a garantia do retorno. O fetiche da mercadoria, na moderna insanidade mercenária, tornou-se uma obsessão. Sem uma rígida regulamentação de marketing, provocamos nas crianças o deslocamento do desejo e comprometemos o futuro do país. Qual o ideal de mundo que prevalecerá nas cabeças dos futuros homens e mulheres?

Brincar com brinquedos que transporta para o mundo lúdico, de fadas e mistérios, desenvolve a fantasia e prepara a criança para as adversidades da vida. Inteligência é capacidade de criar saídas em situações difíceis e desafiantes. Brincar e fantasiar - ambos defendem a criança da loucura do mundo. Sem fantasiar, nos expomos ao real de forma desprotegida. Os verdadeiros pensadores foram vetorizados por um imaginário de fantasia. A grande razão da vida, a única loucura que nos redime, é a da criação. Sublimar, provocar o atravessamento pela arte. O encontro do sujeito com a interioridade é fruto do mergulho em fantasias originárias - raízes fiduciárias.

Quais as conseqüências de passar a infância operando botões, guerreando com monstros virtuais? A guerra travada na tecnologia não provoca medo, não coloca a criança em situações de apuro, tampouco a prepara para a verdadeira guerra da vida. A guerra que travamos com os fantasmas que nos emperram. E bloqueiam os voos da existência humana. Ao construir e manipular brinquedos construídos para si e por si, a criança de outrora vivenciava oportunidades de encetar o processo de subjetivação.

Manoel de Barros, em Memórias inventadas, nos fala da importância de escovar osso, trabalho de arqueólogo. A arqueologia da vida começa na infância, quando devemos escovar tudo – fuçar buraquinhos, enfiar dedos nas covas da vida. Viver é desvendar furos, alisar pêlos, desvelar sentidos. “Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras”. Se seguirmos as pecadas do poeta, descobrimos que é na infância que aprendemos a remontar sentimentos – destampar oralidades sonolentas.

Sempre que leio Manuel de Barros, me lembro de minha infância no sertão paulista. E me assusto com a diferença da infância das crianças urbanas. A maioria cresce trancada dentro de caixotes e confinadas diante de aparelhos. Antigamente, cada criança era responsável pelo seu brincar, cabia a cada uma inventar o seu espaço lúdico. Eu gostava de fazer casinhas debaixo de árvores. Varria o chão de terra, tirava as folhas secas - tudo lisinho, limpinho. Fazia o fogão com pedras e nele cozinhava arroz e abobrinha. E sonhava com uma vida de “casa de verdade”.

Aprender a gostar de casa é uma coisa muito boa. Casa, culto, cultura. Morar, namorar. Gostar de habitar, abrigar e hospedar. Cultivar lembranças e manias que nos posicionam na vida. Acho que é assim que nasce, na pessoa, o desejo de casar - brincar na casinha. Amar é demorar no coração do outro. Bom para quem gosta de casa e de cozinha. Quanto mais o cozido demora a ficar pronto, mais dá tempo para a gente pensar na vida e nos segredos. Fantasiar, brincar e cozinhar devem ser irmãos. Como saber e sabor. Verbos de muita personalidade. Se a gente souber conjugá-los, nos transportarão para mundos muito interessantes. Gostar de descobrir palavras, pessoas e comidas, se aprende de pequeno, brincando de graça, na natureza.

Brincar de graça é extrair graça com graveto, folhas secas, rios e animais. Assim é que, antigamente, as crianças se preparavam para as coisas sérias da vida. Aprendiam a ter esperança no futuro – pois tudo era custoso e gostoso. Tudo que nos chega muito fácil é sem graça. Toda infância brinca igual e sofre pelas mesmas coisas. Lá no sertão, o sofrimento nos chegava devagar. A dor andava a cavalo, hoje ela anda de carro importado. É sofrimento apressado para ser sanado. A gente cozinhava, na mesma panela, as tristezas e as alegrias. E temperava com paixão, dignidade e paciência. Hoje é tudo comida pronta. A gente, da cidade, não sabe cozinhar comida que alimenta a alma. Só comida sem emoção que mata a fome da pressa. Comida congelada não tem sabor – é comida sem personalidade. Comer sem vontade faz mal, deixa a pessoa desentusiasmada e desapaixonada. Foi assim que a vida da cidade transformou tristeza em depressão - falta de paixão.

A humanidade busca, desesperadamente, a felicidade - um abrigo no coração do outro. A questão é que, muitas vezes, a buscamos de forma errada. Ao direcionarmos o desejo, o camuflamos. Com a abundância de opções de entretenimento, o desejo humano deslocou das instâncias afetivas para as instâncias de consumo - sofisticamos nas aquisições. A economia do Brasil vai bem, mas a educação vai mal. No item consumo de bens materiais, somos campeões, mas no de bens culturais somos pífios. Desdobramo-nos para suprir os filhos de celulares, jogos eletrônicos, mas não gostamos de investir em livros e cursos. O país carece de mão de obra qualificada, inclusive no alto escalão das grandes empresas.

Como adquirir objetos de desejo não satisfaz a demanda interna, não obtura a falta ôntica - incompletude originária -, acabamos nos embreando em mata escura. O bem-estar prometido pelo mundo financeiro, ao vincular conforto interno com mercadoria, fracassa. Ir às compras não hidrata a alma, tampouco nos torna melhores profissionalmente. O otimismo apenas no consumo é mais uma falácia que querem nos vender.

Que metafísica pode existir numa refeição fast food? Em que transcendência os objetos nos transportam? A genialidade do marketing consiste em transformar coisas banais e corriqueiras em grandes acontecimentos. Que fantasia há numa ida ao shopping, num big mac? Ao consumir os representantes do capitalismo globalizado, as crianças se sentem integradas. Como se os objetos garantissem uma filiação - lugar de pertencimento e posição de prestígio. Os objetos operam com a sensação de acolhimento - aquisições com efeito de reconhecimento. Criar filhos na cartilha do consumo frio e desidratado é padecer no deserto e expô-los às mazelas da hipermodernidade. Muito barulho por nada.

A vida mercadorizada destrói esperanças e personalidades. Ao perder o desejo de lutar por outras concepções de vida, atolamo-nos na desavergonhada crença no consumo como solução da insatisfação humana. Como suportar a dor de se ver no limbo do comum, do ordinário? Cultuar a si próprio, brincar com lembranças e explorar fantasias é recusa aos fragmentos de um reinado que ruiu - palco sem espetáculo e praça sem coreto.

Artigo publicado em 16/10/2010 no caderno Pensar do jornal EM.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Cordialidade cínica

Inez Lemos


O Senado surge no Império Romano como assembléia de patrícios, constituída por magistrados, senhores senis e experientes que primavam pela felicidade coletiva da pólis. Para Aristóteles, a política é o desdobramento natural da ética, quando cabe aos políticos se ocuparem com a felicidade da pólis, quando a virtude está no meio-termo - condição ideal para se viver bem, evitando os extremos. O vício é efeito da falta ou do excesso. República é um sistema de governo que visa democratizar o Estado, tornando-o público e priorizando os interesses dos cidadãos que elegem seus representantes. Aristocracia é um governo monopolizado e controlado por um grupo de privilegiados, representantes de uma casta, fidalguia com foros de nobreza. Cordialidade cínica é o comportamento que prevalece hoje na política brasileira, quando políticos, temendo a lei, preferem absolver alguns corruptos a serem também fiscalizados e condenados, livrando os colegas das acusações. Cordialidade - traço que Sérgio Buarque de Holanda apontou como do brasileiro, é aqui identificado como permissividade perversa.

Roriz, Arruda, Maluf, Collor, Calheiros. Todos já foram processados em suas trajetórias políticas, e alguns desejam se reeleger nas eleições de 2010. Pelo visto, vão encontrar uma brecha na Lei do Ficha Limpa que impede a candidatura de políticos condenados por decisão colegiada. É comum, no Brasil, os políticos darem um jeitinho e escorregarem, escapulir e continuar livres para roubalheiras e falcatruas. Calheiros é senador pelo estado de Alagoas (PMDB). Cresceu em Murici entre pobres e ricos, usineiros e bóias-frias, coronéis e retirantes. Ali fez escola para assumir o senado, lugar privilegiado, no Brasil, para se construir impérios. Entre estratégias e artifícios escusos, tapinhas nas costas, propinas, o moço alçou vôo. Collor e Calheiros representam o atraso implantado pelos coronéis do nordeste. Deflagra o Brasil arcaico e faz inveja aos que temem a lei - somente o perverso e destemido que desafia a lei, esbanja cinismo e hipocrisia. Do outro lado, as vítimas, ora das enchentes, ora da seca, afundam na miséria. Alagoas é o nosso Haiti.

A seca tem poderes ambíguos - ao provocar a miséria, abre espaço para os espertos explorarem a população e sua condição de miserável. Contudo, a seca gera riqueza e cria mecanismos de desvio de dinheiro público. É uma indústria que sangra anos lama do subdesenvolvimento político do qual Alagoas é apenas mais um exemplo. O Brasil tornou-se refém da ambição e da mentalidade atrasada que se alastrou pelos latifúndios e usinas de açúcar. A desfaçatez da elite agrária deixa herdeiros. Muitos políticos conservam traços do escravismo e do latifúndio: casa grande & senzala, coronelismo, voto de cabresto, currais eleitorais. O voto era garantido pelo fazendeiro em troca de favores. Foi nessa escola que muitos políticos se diplomaram. Um povo que permite tanta descompostura e perversão de seus políticos, ou está com a autoestima em frangalhos, ou perdeu as forças para lutar. O Brasil é hoje uma nação desesperançada - cansada de esperar dos homens que ocupam o poder, ética. Acontece que política exige mais que esperança, exige uma opinião pública forte, participativa e atuante, tudo que só agora estamos construindo.

Enquanto o Brasil não combater a desigualdade social de forma efetiva, com educação de qualidade, escolas técnicas, emprego e oportunidades, não banir o foro privilegiado, riscando de nossa Constituição o tratamento desigual e perverso, sobretudo a imunidade parlamentar, nunca iremos mudar de posição. Sempre seremos um país violento, inseguro e injusto. País cujo Senado, além de pouco operante, é um dos mais caros do mundo. Enquanto o garoto da favela ligar a televisão e for incentivado por deputados e senadores a roubar e matar, dificilmente a violência vai diminuir no Brasil. Eles apenas colocam em prática o que os poderosos realizam há anos. O alvo será sempre o indefeso, o mais fraco – pobre, negro, mulher e homossexual.

Os governantes sempre trataram o povo com desdém e descaso. A imagem do Brasil é de uma mãe que, sem escrúpulos, discrimina uns filhos e privilegiam outros - rapagões que só sugam o leite dos menores. Os nordestinos, cuja vida sempre foi severina, não mereciam assistir à espetacularização dos bandidos, heróis da desfaçatez e da arrogância. Muitos devem se envergonhar de seus patrícios emplumados em seus conservadorismos. Aos retirantes, resta desbravar outros sertões, pois Passárgada só existe para os amigos do Rei. Os políticos há muito vem vendendo a alma aos demônios. Demônio é aquele que, na falta, viciou-se no excesso. Excesso de riquezas, cinismo e desonestidade.

Mais que denunciar e chamar a nossa atenção, devemos fazer uma revisão nas posturas cínicas e antiéticas que temos demonstrado. Cinismo é isso, além de não assumirmos os erros, ainda queremos deles tirar alguma vantagem. No Brasil do “jeitinho”, está cada dia mais difícil cobrar da moçada ética e cidadania. Se a melhor forma de educar é por meio de exemplos, onde que os jovens irão encontrar disponíveis posturas que os deixem honrados e orgulhosos? As atitudes que dominam a cena política são as piores – senadores e deputados envolvidos em crimes se elegendo. A questão está na impunidade aos infratores. Errar é humano, contudo, quando deixamos de submeter o sujeito em correções e punições, eternizamo-lo na anomia - atos perversos, fora da lei.

Como o Brasil foi se tornando um país frouxo no cumprimento das leis? Quando os políticos autorizam um colega envolvido em corrupção a continuar legislando, sem sofrer sanção, eles estão formando uma nação de corruptos e criminosos. Não existe autoridade desvinculada da figura paterna ou de quem a exerce – presidente, senador, pai, professor. Ela resulta de mecanismos eficazes na regulamentação do excesso de gozo. A lei, para ter eficácia, tem que valer para todos. Quando não oferecemos aos jovens exemplos de honestidade e respeito ao outro, convidamo-los a usar a violência e o poder para atingir seus objetivos. Como transmitir aos jovens a lei simbólica, exigindo que caminhem na legalidade? Sabemos que a força é insuficiente para impor respeito e cobrar ética, cidadania.

Ética passa pela alteridade, quando o outro entra em cena. Para que a ética prevaleça numa comunidade, ela tem que lhe conferir sentido. Onde está o sentido de se viver num fundamentalismo consumista e competitivo, em que a maioria quer vencer a qualquer custo? Quais os valores fundantes de nossa sociedade? Educamos os filhos em valores que não estão relacionados ao espaço público. Os interesses privados sufocam interesses como solidariedade e amizade, colocando em risco a vida na comunidade. O dia em que perdermos o elo que une uma nação, perderemos também a autoridade necessária na condução de um país. Mergulho na desordem absoluta, no desrespeito ao outro. Ética é a arte do bem viver.

A lógica da cidadania deslocou-se para a ótica do consumidor. Se o sujeito for endinheirado será bem recebido, querido e respeitado nos estabelecimentos comerciais. O Brasil sempre dispensou tratamento diferenciado aos colarinhos brancos, corruptos ou não. É quando o garoto descobre que, para se dar bem, basta ser rico, poderoso e famoso – valores que certamente vão lhe garantir mulheres bonitas, reconhecimento e deferência. Estamos ensinando ética como se fosse algo que, junto a direitos e privilégios, se compra. O Brasil vive uma esquizofrenia social - de um lado as classes abastadas reivindicam privilégios, de outro o Estado não garante os direitos às classes de menor poder aquisitivo.

A criminalidade envolvendo jovens deflagra a cultura perversa que sustenta o imaginário do brasileiro - as contravenções sociais dos políticos e dos pais os desobrigam a respeitar as regras da boa convivência. A autoridade sustenta-se no imaginário que os filhos (cidadãos) constroem do pai privado e do pai social. O pacto social só se opera por meio do pacto edípico. O outro não pode ser visto como possibilidade de ganho e desfrute, alguém que porta objeto ou possui algo que nos provoca inveja e desejo. Reivindicar respeito é recusar privilégios. É não disseminar revolta, é saber conquistar bens materiais sem provocar inveja, frustração. A riqueza é pernóstica quando persiste no meu próximo o sentimento de abuso, de ganho indevido, desonesto. Como não implantar no próximo o desejo de ocupar o lugar de privilegiado, daquele que se deu bem e, sem constrangimento, circula na ilegalidade? Na selva cínica, salve-se quem puder, a menos que os pais incluam, na mamadeira do filho, ética todo dia. Cinismo cordial é veneno que corrói a alma social.