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domingo, 21 de novembro de 2010

FUNDAMENTALISMO EXISTENCIAL

Inez Lemos

O totalitarismo suprime a liberdade de pensamento. E a política não pode ser permeada de preconceitos. O cenário predominante das eleições deste ano violentou o pensamento. O que subjaz nas concepções conservadoras que obscurecem o debate com a sociedade, como o que se estabeleceu em torno da descriminalização do aborto e do casamento gay? Convocar o evangelho em questões seculares, questões de saúde pública e insistir na vertente fundamentalista é negar emancipação e voltar ao tempo da inquisição, que se arrogava ao direito de legislar sobre o corpo do outro. E tratar, de forma moralista, questões políticas. É assistir a um festival de manipulações criadas por religiosos que se utilizam de prerrogativas do cargo para convencer incautos fiéis. Fazer uso da Bíblia em debates políticos soa como blasfêmia, apelação. Nessa dança de aproveitadores, quem toca a música é o interesse político - a bancada religiosa, longe de querer salvar almas pecadoras, se ocupa em garantir espaço no congresso.


Debater questões sociais com moralidade é esperteza. Quem acusa o outro de pecador se atribui o direito de julgar e controlar. A Igreja medieval usou e abusou de dispositivos de poder. Em nome de Deus, condenou, prendeu, torturou, abusou sexualmente, queimou muita gente e enriqueceu. A forma mais eficaz de controlar um povo é tirar dele a capacidade de escolher com lucidez. Fundar uma concepção em cima de dogmas e tabus é obscurantismo, é retorno às trevas.
A internet tornou-se a tribuna dos jovens. Nela, por meio de sites de relacionamento como o Twitter e o facebook, muitos registram opiniões, protestos. A tecnologia, por meio da internet, atua como valioso meio de comunicação. E os jovens que nasceram pilotando os botões da modernidade virtual, se esbaldam. É o mundo acessado em minutos. Acredito que, se soubermos usá-la, as vantagens superam os perigos. Como tudo na vida, a qualidade da internet dependerá da capacidade do usuário de escolher e discernir o que é lixo e produção descartável, do que é sério e merece conferir.


A estudante de Direito Mayara Petruso, de São Paulo, puxou a fila de jovens preconceituosos e que, pelo que demonstraram, desconheciam o rigor da lei 7.716, de 1989, que reza punir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Impulsionados pela onda de preconceito instaurado na campanha do segundo turno para presidente da República, Mayara postou vários comentários expressando sua ira contra a vitória da candidata do PT, Dilma Rousseff, e foi respaldada por uma enxurrada de textos de outros jovens, cidadãos do eixo Sul-Sudeste. O alvo era os nordestinos. Avaliaram os votos do Nordeste decisivos no resultado da eleição. Entre as pérolas registradas, temos: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”. “Só Hitler acaba com a raça dos petistas construindo câmara de gás no nordeste matando geral”. “O #nordeste é um lugar onde nós, pessoas brancas de classe média alta, vamos fazer turismo sexual comendo umas baianinhas vagabundas”.


A Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE) processa a estudante por discriminação contra os nordestinos. Mayara não está sozinha na empreitada em destilar o ódio xenófobo contra os irmãos de cima. O site Diga não à Xenofobia! denunciou 110 mensagens de ódio aos nordestinos e apoio à estudante. Resta aguardar os desdobramentos, contudo, se depender de Janice Ascari, procuradora regional da República em São Paulo, os intolerantes que compactuaram com a discriminação podem receber a mesma punição: “É um absurdo e incompatível com os preceitos da Constituição”.


Contudo, esse é mais um crime anunciado. Todo profissional que atua no campo da formação humana, e que acompanha a forma como os jovens estão sendo inseridos na cultura, recebe notícias como estas sem surpresa. Intolerância e posturas fundamentalistas intensificaram com a globalização e o fim dos movimentos sociais. A sociedade foi substituída pelo mercado. Interesse e desejo tornaram-se a mesma coisa. As escolas, ao julgarem mais relevante se ater aos conteúdos do vestibular, priorizando uma educação enxuta e focada, descartam a reflexão e o debate. A morte de Deus, proclamada por Nietzsche, aponta a morte da transcendência, o fim da capacidade de recusar o pensamento positivo e único. Enterra, junto à metáfora divina, a dialética, a lucidez e o discernimento. Assistimos ao funeral da tradição do pensamento iluminista - a razão moderna cai por terra. É o declínio do ato de refletir sobre conceitos preestabelecidos, quando a possibilidade de conferir significado à ação é anulada e desprezada.


Família e escola são fortes aliados na formação do cidadão. Embora de lugares diferentes e com atribuições e graus distintos, ambas são responsáveis em apontar os limites fundantes da vida na sociedade. Os códigos de ética e boa conduta operam como vetores. Contudo, quando a violência prevalece entre jovens de classes abastadas, acreditamos que algo está fora do lugar. Ninguém nasce racista, preconceituoso. Onde que eles estão aprendendo a desrespeitar o diferente – o feio, homossexual, negro, pobre e cabeça chata? O discurso predominante enaltece o papel da biologia, atribuindo à hereditariedade, genética, DNA, o destino da criança. É confortável vivermos numa sociedade que desresponsabiliza os pais pela conduta dos filhos, atribuindo tudo aos genes. Todo comportamento é avaliado sob critérios objetivos, desconsiderando o viés subjetivo. Esquece que é a linguagem, que permeia as relações sociais, quem estrutura o sujeito. Uma questão política e cultural torna-se genética. A criança que presencia os adultos desqualificarem um subalterno, cresce convicta que ela é um ser superior a esse outro e desrespeitá-lo é um direito e não uma violência ou crime. Em São Paulo, geralmente os serviços de porteiros e domésticos são realizados por nordestinos.


O preconceito é a crença em um conceito falado, o significante que chega como dispositivo de verdade. O preconceito contra uma determinada raça, ou população, é uma estratégia de poder. A crença de que os paulistas são superiores aos nordestinos produz uma ilusão identitária - tanto nos que se arrogam superiores, como aos que se veem como inferiores. O racismo surge como forma de justificar a exploração de um povo sobre outro, revelando sempre interesses econômicos. Assim foi com os africanos e judeus - sempre haverá um alvo para justificar ações de desrespeito e violência. Criam-se dispositivos que produzem ilusões identitárias, ofertas imaginárias de pertencimento. Os jovens, ao se aliarem aos significantes de classe e ordenadores sociais oferecidos pelos defensores da desigualdade racial e social, são contaminados por mensagens de intolerância. Enquanto a plebe, envergonhada e excluída do banquete, se adapta ao lugar de negativo social. É o fundamentalismo colonizando o inconsciente e a existência. Muitos recusam o debate e, de forma dogmática, seguem os messias da contemporaneidade – mercado, sociedade de consumo, religiões espetáculos.


O espírito iluminista emergiu com o Renascimento, Deus já não exercia tanto poder sobre os homens, e a humanidade, desamparada, via-se responsável por seu destino. Propagava-se o pensamento crítico ao obscurantismo religioso. De Espinosa a Voltaire, Kant a Marx, Freud a Foucault, o que temos é o alerta aos falsos profetas e falsos saberes, convocando o homem a usar o juízo e o pensamento livremente. A maior contribuição do iluminismo foi desmistificar falácias, libertando o indivíduo de qualquer forma de soberania, seja religiosa, geográfica, racial. A questão era subtrair o ser humano de todo particularismo identitário, religioso ou sexual. Contudo, sem o benefício da dúvida e da dialética, recusamos a diversidade, o avanço social, e investimos contra a lucidez.


Camus, em O mito de Sísifo, analisa a tragédia que é viver segundo as ordens de um outro e alheio aos nossos interesses. Camus chamou de homem absurdo o que sabe de sua tragédia. O mito trágico e seu herói, que tem consciência do absurdo que é o trabalho alienante e repetitivo. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, sabe de sua condição de miserável, que não pode fazer nada de eterno, como conferir sentido profundo às coisas e ao trabalho. Sísifo metaforiza a alienação a que muitos se submetem ao viver subjugados. Sempre haverá uma classe disposta a usar de estratégias discursivas para imprimir no outro o sentimento de inferioridade. Há os convictos da existência de uma super-raça - os eleitos por Deus. Oliver Cromwell, militar e político britânico, líder da Revolução Inglesa, no auge do delírio escreve o livro O eleito por Deus. Como os jovens do Twitter que, num momento de alucinação, se julgaram acima do bem e do mal. Espero que não falte gente séria em avisá-los que racismo é crime, no Brasil, desde 1989.






[1] Artigo publicado em 20/11/2010 no caderno Pensar do EM.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A LOUCURA DE MACHADO

Inez Lemos

No mês das comemorações do Dia do Médico (18 de outubro), recorro ao escritor maior, Machado de Assis. Vale lembrar o que esse visionário da literatura já prenunciava: em O Alienista, ele metaforiza a sociedade que vê patologia em tudo, a crença cega na ciência e seus arautos. O médico Simão Bacamarte representa a obsessão pela reclusão ao atribuir aos métodos científicos a responsabilidade pela cura dos cidadãos que apresentavam sintomas psíquicos.
A ciência do século 19, com seu olhar frio e instrumentalizado sobre o sujeito, submete-o ao saber médico – saber/poder. Essa lógica está na contramão do que podemos chamar de tratamento psíquico ético. Tratamento diz da forma como médico e paciente interagem, implica participação no processo. O sujeito interroga o sintoma e, ao se envolver, toma para si a responsabilidade dele. A postura de se implicar no sintoma é diferente de delegar ao outro a responsabilidade pela condução do processo.

O Alienista representa a ciência que se coloca como absoluta, julgando-se capaz de tratar o sujeito apenas por meio da medicação. Uma ciência sem brechas para ouvir o sujeito e seu sofrimento, suas angústias e delírios. Machado, já naquela época, lança sua profecia contra o discurso da ciência encarnado em Simão Bacamarte. Crença que atua no sujeito como dogma: “A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução”.
A maioria da população de Itaguaí se submeteu ao poder de Bacamarte como alusão ao pensamento único, tão em voga no mundo contemporâneo. Vivemos o despotismo científico - hegemonia do discurso da ciência, que vê cada sujeito como objeto a ser manipulado, avaliado e diagnosticado. O viés biológico, que associa cada sintoma ao potencial de medicação, nos remete à idéia de cárcere e terror que domina Itaguaí: “A Casa Verde é um cárcere privado”. Que lugar a indústria farmacêutica ocupa nessa história? Trocamos as grades dos hospícios pelos efeitos deletérios das drogas lícitas, inibidoras e amortecedoras do sujeito desejante?

A questão não é denunciar a ganância das indústrias de medicamento, mas refletir sobre o conjunto de medidas no sentido de calar as vozes discordantes, apaziguando o sujeito de forma sutil, branda e limpa. A quem interessa o apagamento do sujeito? Uma vez diagnosticado, cria-se o estigma, o preconceito, a vergonha e a inibição. Ter um diagnóstico de bipolar é como ser premiado pela profecia de doença, sofrimento que poderia ser evitado. “Ao me separar de minha mulher, fiquei deprimido, me sentindo frágil, desvitalizado. Procurei um psiquiatra e ele me medicou, dizendo que eu era bipolar”, testemunha G, que chegou para a análise fazendo uso de lítio - medicação controlada. Hoje, G tenta superar as marcas do diagnóstico equivocado. Contando apenas com a coragem moral, ele busca investigar, ao deslizar sobre as dores guardadas, um novo sentido para a vida.

Ser alienado é se demitir da condução da vida, submeter-se à pragmática prescritiva e, sem interrogar, consumir tudo o que ela determina. Sem questionar os diagnósticos, sem querer saber mais de si, o sujeito se entrega à estratégia publicitária dos laboratórios, que insistem em ensinar a ele como se portar diante dos sentimentos. O que se modifica é a posição subjetiva do usuário, que se comporta como refém da psicofarmacologia. O principal desastre dessa estratégia discursiva e mercadológica é a patologização dos sentimentos e da existência, pois qualquer mal-estar se torna doença. Curar-se significa decifrar o sofrimento. Cura é mais que bem-estar, é mais que se sentir feliz. É se sentir livre, dono de seu corpo, sua vida.

Michel Foucault já havia nos alertado sobre abusos dos dispositivos de poder - saber que, mal empregado, mais oprime que liberta. É mais fácil intervir na doença que no sujeito e seu sintoma, excluindo-o e rotulando-o. A reclusão moderna é diferente, não se dá pela força, mas pelo convencimento, pela submissão e pelo autoengano. A única sanidade disponível é recusa ao afã da nova ciência. Quem é o louco da neociência? Os laboratórios, os médicos ou o paciente, que se submete, sem questionar, aos diagnósticos? Há algum tempo, seria impensável a criança ser diagnosticada, apressadamente e de forma pouco criteriosa, de psicótica ou hiperativa.
A sanidade que desejamos lembra refúgio, apaziguamento. Lugar a duras penas conquistado para viver os sonhos. A insanidade do homem moderno é não saber de seu desejo. O conceito atual de sanidade nos lembra obediência. São é aquele que cumpre as ordens médicas, que cobra do doutor fórmula mágica para o transtorno. Eis o paradoxo: ao nos submetermos aos investimentos do capital contra a subjetividade, disponibilizamo-nos a seus interesses e o elegemos dono de nosso corpo. A loucura machadiana fez literatura e pôs em xeque o poder da ciência. Denunciou a sordidez da sociedade, rejeitando crenças petrificadas, mitos perversos, valores e comportamentos elitistas e excludentes. Deflagrou a barbárie conduzida pelos barões.
Quando tememos a insanidade, revelamos ódio aos projetos com os quais nos envolvemos de forma contrariada. A busca de sucesso financeiro a qualquer custo revela ódio à felicidade - medo da satisfação primordial, o encontro com o primeiro objeto amado e perdido. Temer a insanidade significa temer a infelicidade. Como levar à frente o projeto de vida que escolhemos sem nos deixar invadir por uma força transbordante e arrebatadora, que nos joga do outro lado da vida, sem autodomínio?

A loucura é vista como perda de controle - o sujeito rompe com o proibido e assume escolhas descabidas, fora da ordem social. Se sanidade é assumir projeto próprio de vida, descobrir a autoexpressão, tal postura se aproxima do conceito de loucura. Se, por um lado, sanidade diz da coragem de ludibriar e escapar dos despropósitos oferecidos pelo mercado, por outro, isso inclui uniformidade - todos se encaixam no mesmo padrão, apagando diferenças e subjetividades.
É difícil debater sanidade numa cultura que não incentiva o pensar e a criatividade. Desejamos, na sanidade, exatamente o que ela exclui: paixão e excentricidade. Se a loucura está relacionada ao excesso, o são é uma pessoa limitada em sua “loucura”. Falsa sanidade é nos assujeitar à pressão social que nos dificulta assumir a responsabilidade por nossa vida, vivendo-a tal como nos agrada. A retórica da sanidade e da loucura esbarra na busca do sentido da vida. Ou de como se escapa da falta de sentido. A sanidade aparece como conquista: algo que adquirimos ao longo da vida, e não como algo com que nascemos. A luta pela lucidez inclui não se contentar com explicações simplistas, atribuindo tudo à genética. Muitos atos de insanidade não resultam da ausência de lucidez, mas do uso perverso dela. Para os superficialmente sãos, sanidade significa vida sem dor e tormento, totalmente integrada ao modus vivendi.

A sanidade passa pela capacidade de enfrentar a própria turbulência. O que sentimos e desejamos depende do lugar de onde partimos – vivências e raízes. Viver implica conflitos, e a realidade não coincide com o que idealizamos. É salutar saber lidar com as dificuldades que o querer envolve. Viver é diferente de vencer - significa fazer escolhas e se aventurar na dimensão humana. O percurso interessa mais que a chegada – quão chato seria trilhar caminhos já sabidos. A sanidade que interessa é construída no contínuo ganhar e perder, amar e sofrer - longe do fundamentalismo burguês de sucesso, poder e segurança.

Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral, nos lembra Platão: “Foi graças à loucura que as coisas mais excelentes surgiram na Grécia”. Loucura necessária é ousar, esticar o fio da existência, transcender paixões. Como testemunha o velho pensamento: “Se o louco persistir em sua loucura, torna-se sábio”.

Machado é um escritor que faz jus a seu tempo e a seu país. Com elegância e nobreza, lançou ironia sobre burgueses que não economizavam desfaçatez - elite tacanha e pouco ilustrada. Com certo fel de classe, ilustrou e representou os que usavam o moralismo para se defender. Não poupou as mulheres e os casamentos por interesse: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Eis a grande loucura de Machado: com coragem e lucidez, denunciou extravagâncias da sociedade conservadora, patrimonialista e reacionária do Rio de Janeiro no século 19.

Talvez por tudo isso o Brasil não produza mais loucos como Machado. Vivemos tempos de aberrações, perversões, crimes e violência. Os excessos se deslocaram - na ausência de lei, a arte é dispensada. A loucura rentável prejudica, agride e faz a roda do consumo girar. A libido foi cooptada pelo mal. O demônio da modernidade se alastrou junto à massa, banalizando o sentido da vida e nos encerrando na miséria existencial. Barbárie é vida sem utopia, sem coragem para transgredir palavras de ordem: goza, compra!


Artigo publicado no C. Pensar do EM em 30/10/2010.