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e entusiasma a alma.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Tempo e desejo

Inez Lemos

Maconha, crack, Rivotril, anfetamina, ecstasy, tabaco, cerveja e cachaça. A mercadoria existe por que há demanda. A demanda aumenta porque produtores e comerciantes querem vender cada vez mais. Os interesses se entrelaçam. Ninguém está sozinho nesta rede de vícios e obsessões. Se ninguém nasce traficante, viciado, corrupto, obeso ou criminoso, quem os produz? A demanda por mercadoria existe por que tentamos tamponar nossa incompletude com objetos de consumo - os obscuros objetos de desejo. Deslocamos a insatisfação e nos posicionamos como reféns dessa senhora midiática que gosta de conduzir nossas vidas. Ela é a mentora existencial - autora do enredo que seguimos sem questionar. Somos guiados por mensagens, significantes que zumbem nos nossos ouvidos.

Há uma diferença enorme entre demanda e desejo, interesse e ideal, alegria e sucesso. Hoje, ser bem sucedido significa atender a demandas impostas pelo mercado de forma rápida, objetiva e prática. Sem titubear. A dúvida é coisa de frouxo. Esquecem que o mecanismo de funcionamento do ser humano é diferente do computador. Não basta clicar: somos intermitentes, confusos - a subjetividade embaça o olhar dos sentimentos. O ideal de vida focado na operacionalidade embaralha, confunde desejo com busca incessante por benefícios. A mania de querer transformar gente em mercadoria - produto perecível, efêmero e descartável, provoca no sujeito sentimento de impotência. Frustrado, ele se revolta por não dominar as emoções, os incômodos que bolem por dentro. Geralmente, caímos em depressão e recorremos aos psicofármacos.

“Naquele tempo, se uma mulher de destino burguês se entediasse, ela não jogava cartas, não corria para o cinema, mas escolhia um livro e lia. Também assim passava as noites meu pai, com um livro nas mãos. Posso afirmar, sem exagero, que na nossa região, para o burguês do fim do século, o livro era necessidade real, como o pão diário”. O húngaro Sándor Márai, em Confissões de um burguês, abre o coração ao narrar a angústia do homem que cresce junto às duas guerras mundiais, ao mundo que se orquestrava nas batutas do capital. Márai nasce com o século 20. É testemunha ocular das transformações – transição da produção artesanal para o mundo em que as relações de trabalho assalariado obedeciam às orientações capitalistas. A atenção voltava-se para a produção em série, industrial. O trabalhador despia-se de sua vontade e seguia o operariado. O trabalho individual acabou. Poucos produzem o que deseja. A lógica não é mais a dos homens, mas a dos donos dos meios de produção – tecnociência. É quando o livro, o pão da alma, é substituído pelo circo virtual.

O principal efeito deste modelo de sociedade é o menosprezo pelo ser humano. A linha de montagem é o monstro que suprime o sujeito e sua via desejante. Ao repetir movimentos, ele perde sua substância, deixa a alma junto à mercadoria. Na fábrica, é comum o operário entrar gente e sair cadáver. O capital, ao roubar seu saber, apropria-se de sua vida – corpo e alma, mente e coração. O mundo industrial alterou os conceitos de felicidade, amor, desejo, tempo, sofrimento, tristeza, alegria, saúde, doença, família, ética e bem-estar. Felicidade é uma televisão de 50 polegadas.


Para nós, antigos, felicidade era cultivar a esperança no grande encontro, momento em que colocaríamos os pés nos trilhos do trem que nos conduziria a nós mesmos. Como reverter o olhar contaminado e embrutecido? Ao transpor a neblina, descobrimos que podemos recusar modismos, pois precisamos de muito pouco para viver. O pouco é muito. Muito em consistência e transcendência - suficiente para domar as inquietações, o tormento abrasador que não cessa em demandar.

Vivemos ungidos pela falsa crença na felicidade industrializada. O homem moderno não gosta de perder tempo, quer a poesia e a alegria sem amargura. Felicidade não é percurso, suor e peleja na arquitetura da existência? O suor metaforiza a condição humana, somos muitos mais que matéria. Somos um corpo erótico que berra, por transcendência, na multidão dos shoppings. Como superar a posição do herói trágico – sabedor da tragédia que é viver o desamparo que a modernidade o condenou? Como enfrentar o isolamento fundado em ilusões identitárias - ilusão imaginária de filiação, amizade e amor? “O homem “feliz” não cria; o homem feliz é, simplesmente, feliz. A “felicidade” numa me atraiu como um objetivo de vida de que pudesse me aproximar de alguma forma”. Assim Márai testemunha sua desconfiança em relação ao pacote de felicidade que o mundo das mercadorias nos oferece – apaziguamento calcado em aquisições desnecessárias e irrelevantes.

O ato de comprar se tornou sinônimo de felicidade – nós nos identificamos com as imagens das mercadorias, em detrimento das identificações com nossas raízes e atavismos. O indivíduo, ao cunhar sua felicidade distante da porção que lhe cabe na trama subjetiva, ao se curvar diante dos imperativos de consumo e se aliar aos ordenadores do laço social, é invadido por um sentimento de fracasso. Impotente e se culpando pela condução equivocada de sua vida, ele ou se entrega ao trabalho ou sucumbe - desmorona e se deprime. Desgarrado das referências paternas que o sustentariam, é convocado a negociar o desejo em troca de ofertas sedutoras de consumo. Fetiche, feitiço, fantasia - ninguém vive sem. Vamos às compras com a mesma fé com que íamos à Igreja. Contudo, se a sedução fugaz se desfaz, nós nos sentimos desamparados, dessubstancializados. Temos perda de satisfação. Abrir mão do desejo é uma forma eficaz de autopunição e autodesprezo – masoquismo mortífero.

“O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Isso é uma monstruosidade. O tempo é o tecido da nossa vida”. Aqui, Antonio Candido coloca o dedo na ferida. A forma como lidamos com o tempo é a mesma que lidamos com o desejo: equivocada. Mais um sintoma do homem industrializado. O principal efeito dessa estratégia de controle existencial é o menosprezo pelo sujeito e sua via desejante. Estamos administrando o ser humano como administramos tabelas e cronogramas, com o olho no resultado - custo e benefício. O tempo é mais um pré-texto, é efeito, e não causa. Devemos investigar o que nos deixa “tão sem tempo” para reivindicações da alma. Se seguirmos essa lógica, descobriremos que falta de tempo é um falso problema. Outra justificativa para as neuroses. Uma recusa em assumir posição diferente diante da concepção atual de temporalidade, que suprime o tempo duração - tempo comandado pelo coração.

Quem é o sujeito da relação que estabelecemos com os objetos de consumo? O consumidor ou o produtor? O mercado existe em função da produção, ele precisa esvaziar prateleiras. Com isso, nós nos tornamos alvo dos mercadores. Se não há mais vontade própria, só interesse controlado por estratégias de marketing, como fica o desejo da criança meio a tanta manipulação? Muitos pais julgam que a melhor forma de educar um filho é construindo fortuna para ele. “O dinheiro do meu pai não me satisfaz, eu não sou ele, ele não é parte de mim. Ele pouco resolve, só me angustia e me paralisa, aí busco refúgio na droga para esquecer minha insignificância” - desabafa um jovem em análise. Como repensar a condução dos jovens no mundo da tecnocultura? Muito tempo para manipular mouse e pouco tempo para investigar o desejo. Normopatas? O normopata congela os sentimentos e, num automatismo, só transita com desenvoltura em normas estabelecidas. Robotizado, circula no mundo de forma operacional e instrumental. O tempo é ferramenta que opera com os interesses do momento. Que momento? Do tempo reduzido das relações afetivas, do olho no olho? Tempo escasso do pai com o filho? Tempo insuficiente para desvendar tramas e fantasias que nos emperram?

Uma luz no fundo do túnel se anuncia. “Minha profissão hoje é ser pai. Quero me dedicar totalmente a isso. Nada paga o prazer de acompanhar o crescimento de minha filha, ver a menina aprender uma palavra. É fascinante”. Eis o depoimento de um pai em reportagem sobre o desejo dos pais em cuidar dos filhos. Alguns deles estão descobrindo o prazer em desempenhar tarefas valiosas e deliciosas que antes eram do domínio feminino. Estão desafiando o imaginário perverso de que filho é obrigação. E assumindo a opção.

O desejo é intervalo sempre em aberto que pulsa entre o tempo do sujeito e o tempo urgente do outro, esse terceiro irredutível que se interpõe entre o homem de negócios e a criança. Para que essa distorção se rompa, temos que ser mais forte que o usurpador de tempo. Devemos assumir a autoria do nosso tempo e do nosso desejo. Pais, nos próximos Natais, que tal darem aos filhos este presente precioso: uma cesta recheada de tempo?

Artigo publicado em 18/12/2010 no C. Pensar do EM.