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quarta-feira, 16 de março de 2011

FELICIDADE E TRANSCENDÊNCIA

Inez Lemos

O filme Lixo extraordinário narra a trajetória do artista plástico Vik Muniz entre os catadores do aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ). Muniz resolveu pintar a vida dos trabalhadores do lixão - personagens de um cotidiano entre urubus e a sujeira que os urbanos industrializados produzem e descartam, sem sequer se dar ao trabalho de separá-la. O documentário nos fala de uma outra vertente de felicidade, pois saímos do cinema com uma inveja danada de Vik Muniz e de Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, ex-catador e presidente da Associação dos Catadores de Gramacho. Não digo isso apenas pelo sucesso do filme, prêmios e indicação ao Oscar, mas pela emoção de algumas cenas, como o abraço sincero, comovido e pleno de gratidão que Tião dá em Vik depois do leilão de uma das obras. Esse abraço metaforiza o momento de suprema felicidade, a aliança com o outro que possibilitou o instante em que, emocionados, ambos expressem alegria pela parceria que ultrapassa a marginalidade e se consolida no reconhecimento. A alegria dos catadores chega sob luzes e holofotes, tal como sonham as garotas candidatas a modelo e artista. Alegria gestada entre mosquitos e pobreza, frustrações e humilhações. O laço social foi moldado no sofrimento. Emergiu de um trabalho de parceria, cooperação e amizade – o elo com o feio que se fez bonito.

Não é nada agradável trabalhar na fedentina do lixo. Entretanto, a tristeza se transforma quando analisada na plenitude, sem descartar sentimentos e angústias de seus atores sociais - quando incluímos no olhar a dimensão humana que cerca a vida dos trabalhadores. Vik Muniz reverteu lixo em arte, sujeira em brilho, dor em alegria, desesperança em felicidade. Captou a história que cochilava entre vísceras, restos e dejetos que jogamos fora - resíduos que dispensamos sem ciência e consciência. Como cuidar da podridão que descartamos se recusamos saber sobre o lixo nosso de cada dia?

Sonhamos apenas com o brilho do sucesso, mesmo que esse se sustente na infelicidade do outro, no fracasso e na vergonha. A tristeza não é fashion. Contudo, a sociedade produz gente que se sente fracassada e infeliz. Muniz e Tião são personagens do enredo de uma felicidade engendrada na lama que cerca todos nós. Juntos, desviaram os trabalhadores da escuridão do ostracismo. Mergulharam na esperança de conquistar o mundo exibindo a porcariada que a humanidade produz. Da lama fez-se o ouro. A felicidade deixa de ser ilusão quando orquestrada na interioridade e nos acordes da transcendência. Vik Muniz transcendeu o feio, atravessou o fedor e atingiu a beleza das entranhas, almas que padeciam entre urubus.

O projeto de felicidade delineado na modernidade se tornou um bem subjetivo, capital psicológico. O novo sujeito circula livre das tradições - a trajetória existencial é marcada mais por escolhas individuais do que por um repertório de cunho social e filiações. Onde se encontra a chave desse estado que muitos perseguem com avidez? Há o caminho seguro que garantirá ao indivíduo a suprema felicidade como apregoam as biotecnologias? É possível conquistar o apaziguamento seguindo a biociência - apostar apenas na felicidade sintética? Como desvencilhar da ordem de felicidade como dever e não como aspiração, projeto que associa vida pessoal e social - indivíduo e comunidade? Qual a origem do individualismo como gestor da felicidade contemporânea?

A transição do mundo medieval, teocêntrico, para o mundo moderno, coloca em cena o hedonismo e desloca o conceito de felicidade para o registro do corpo. O cristianismo, que apregoa a felicidade por meio da purificação da carne e da salvação da alma – verdadeira comunhão com Deus, entra em declínio. O corpo vai ocupar o lugar primordial, agora não basta apenas confiar a Deus nossas aspirações e desejos, temos que buscá-los no real do corpo. Em decorrência dessas transformações, Niezsche teceu sua crítica ao cristianismo: “Deus está morto”. Significa que, para se atingir o prazer, vale tudo. A hipótese de que a felicidade é um bem subjetivo, capital passível de ser investido e acumulado materialmente, torna-se aterrorizante e perturbadora. A profecia niezschiana metaforiza a dissociação do mundo com a transcendência. A morte da ordem simbólica marca o advento do individualismo desgarrado das narrativas que orientavam a existência social - significantes que vetorizavam respeito, dignidade, honestidade, dever e ética. O sujeito da atualidade, livres das interdições, é instado a agir segundo suas convicções. Jogado à própria sorte, autônomo, busca o máximo das fruições e dos prazeres da vida. O que antes era reivindicação e meta a ser conquistada se tornou imperativo. Todos perseguem, sob os mesmos parâmetros, o mesmo estilo de vida - ideal de felicidade iniciado com o racionalismo científico e aprofundado pela biotecnologia.

Que felicidade, se o homem, desamparado da providência divina, agora é o único responsável pela condução da vida? A experiência de felicidade não é mais financiada por Deus. Com a racionalização burocrática das instituições e com o discurso da ciência orientando as práticas sociais, dá-se o controle da vida cotidiana, sobretudo quando a imprevisibilidade e o acaso são banidos. Agora tudo é passível de ser avaliado, controlado e previsível. Viver se tornou um grande plano de metas.

A vida humana se torna questão de cálculo e estratégia, incrementa-se o poder dos indivíduos sobre a natureza. Surge a idéia de perfectibilidade e a felicidade, sintética, é forjada em laboratórios e mediada por estratégias de discurso, numa articulação entre ciência, poder e ploítica. A construção de um projeto de felicidade se caracteriza, desde então, pelo culto ao individualismo. É quando assistimos à desconstrução das práticas sociais nos espaços públicos. Com a emergência do “homem privatizado”, o cidadão narcísico da sociedade neoliberal dissemina o ethos que vai fundar o discurso sobre a felicidade. Atualmente, ser feliz é viver seguindo padrões estabelecidos pelo mercado, com total autonomia para ocupar e privatizar os espaços geográficos e humanos. Salve-se quem puder! É a ética a reboque da tecnociência.

O indivíduo moderno, desprovido da proteção divina e do poder público, muitas vezes se desespera. Vulnerável e disponível aos mercadores da felicidade, acata os ditames da biotecnologia. Desamparado, trava a batalha diária pela sobrevivência. Deprime-se, distante da concepção de solidariedade e amizade. Como suportar as tragédias num mundo sem transcendência, sem sentido e desmagificado? A cultura narcísica se assegura ao disseminar o eu ideal. Cria-se, primeiro, um padrão de eu que vai garantir o modelo de felicidade centrado no individualismo e no consumismo, enquanto o outro é excluído, assim como qualquer imperativo de ética e alteridade. O sujeito é forjado sem se interrogar sobre suas convicções e fantasias – atavismos que transcendem a razão moderna. O homem racional, ao profanar o sagrado e desnudar o simbólico, se vê como único responsável pela sua salvação. A trajetória solitária de expansão do eu não inclui o outro no horizonte psíquico. Desvinculado de qualquer referência de alteridade, interioridade e espiritualidade, nos jogamos na arena com os leões.

Se não há felicidade possível senão sob luzes e holofotes, como sobreviver ao medo, ao pânico pela não conquista do sucesso? Como controlar a ansiedade e nos desviarmos do tédio e do desencantamento pelo mundo frívolo, desprovido de transcendência e simbologia? Como escapar do deserto - opressão por uma vida sem sentido, forjada no repertório do eu sozinho? A felicidade é uma idéia, uma narrativa, o sonho que projetaram para nós e acabamos aceitando. Embora, muitas vezes, o modificamos e o ampliamos. Importa que o desejo esteja realmente ajustado à crença de que é ali que reside a salvação. Qual felicidade, a que nos deixa pressionados e estressados na competição pela busca da boa imagem, e desacreditados do amor?
A música que nos encanta é composta em conjunto, cantada em parceria e harmonizada no coletivo. Diferente da minimalista, refúgio dos solitários. O samba do eu mínimo é um samba sem paixão, sem sangue e emoção. Diferente do abraço que Tião deu em Muniz por ter transformado feiúra em beleza! Aterro sanitário é feio, depósito de sucatas e dejetos. Mas feio também são a arrogância, a covardia e a alienação. É acreditar que seremos felizes sozinhos. No mundo dos sentimentos, há os nobres e os vulgares. Dizem que a inveja pertence aos vulgares. Mas, quando somos tocados em nossa vaidade, no orgulho de sermos reconhecidos e elogiados, geralmente produzimos algo de bom.

Lixo extraordinário, além de ser uma aula de sociologia, questiona o narcisismo. Provoca o desejo de abandonar o individualismo e de experimentar a felicidade engendrada com o outro. Felicidade que transcende o aterro sanitário que expele podridão humana.

Artigo publicado na caderno Pensar do jornal EM em 26/02/2011

FAMÍLIA E FUNÇÃO SOCIAL

Inez Lemos

Pais separados, lares monoparentais, recasamentos, filhos criados entre não irmãos. O estatuto da família mudou. O mundo moderno tornou-se o lugar em que narciso deita e rola. E dificulta a tarefa do pai e da mãe, que, diante de ofertas sedutoras e exigências de consumo, beleza e visibilidade, se desesperam. A luta hoje é por reconhecimento e prestígio social. As demandas dos pais por resultados imediatos geralmente os impedem de olhar para os filhos como seres de sentimentos - muitos se esquecem de que, quando envolvem filhos, os direitos individuais tornam-se suspensos e reduzidos.

A vida moderna também não é fácil para os homens. Muitos pais se sentem desqualificados diante dos filhos por não conseguirem atender suas exigências de consumo. Inicia-se o processo de culpabilização, atribuindo somente a eles a responsabilidade de fracasso, quando ela é também social - desemprego, crise econômica. Pressionados, os filhos são vistos mais como fardo que como fonte de prazer. Família é lugar de alegria e sofrimento. Não deve ser administrada na lógica empresarial - custo/benefício.

Vários fatores contribuem para a separação dos casais. A insegurança nas relações se ampliou tanto no contexto afetivo como social. Que amanhã nos espera? O desafio está em descobrirmos saídas que não nos oprimam. No fundo da questão, há a idéia de felicidade, que, contaminada pela lógica economicista, vicia o olhar da família. A anatomia das relações afetivas, quando envolve pais e filhos, revela distorção nos valores e na forma de conceber o mundo. Outrora, filho representava orgulho, era visto como o herdeiro de um nome, alguém que daria continuidade ao legado familiar.

A questão financeira era tratada de forma discreta e se restringia ao âmbito da família. Não era comum contabilizar os custos da educação da prole - hábito que hoje se tornou corriqueiro. Como podemos desejar jovens menos interesseiros se os educamos mais voltados para a conta bancária que para a conta da satisfação? Se o sentimento que cultuamos é o da competição, do levar vantagem a qualquer custo, como podemos esperar posturas generosas e amigáveis na hora em que eles, já casados, resolvem se separar?

A educação para o sucesso é um dilema ético para algumas famílias e instituições educacionais. Muitos pais exigem a educação patrimonialista calcada na desigualdade social e na prevalência do privado sobre o público. Algumas escolas justificam que aboliram do currículo o debate sobre cidadania por julgar relevante focar apenas nos conteúdos cobrados no vestibular. Espelhados no imaginário que circula na arena política, quando domina improbidade, e atentos aos rumos que a sociedade vem tomando, há pais confusos e questionando a educação embasada nos nobres princípios de honra e honestidade. Quando família e escola, imersos no dilema ético-pedagógico, colocam em cheque questões dessa ordem, algo na concepção de Nação fracassou. O ideal republicano, simbolizado na Declaração dos Direitos Humanos, ao operar no inconsciente do cidadão, requer sustentação nas práticas sociais.

Na verdade, o dilema ético é falso, pois o sujeito que cresceu cultuando valores, como honestidade e respeito à coisa alheia, sabe que postura e caminho abraçar. Até que ponto as mudanças no contrato social e as condutas ético-políticas indicam transformações na subjetividade? Como repensar a família e a escola num contexto social e político esgarçado? Todo discurso necessita de um sujeito que o sustente. Não existe subjetividade avulsa, autônoma. A subjetividade, aquilo que expõe a conduta humana, constitui-se como efeito de discurso e de significantes. E, ao se promover no laço social, coloca o sujeito articulado aos pais e aos significantes. Família, escola e política - como desarticulá-las dos significantes de desonestidade e enriquecimento ilícito?

A lógica centrada na usura, no ideal de progresso material, no ganhar e vencer a qualquer custo respinga nas famílias. Assim posto, é de se esperar que alguns casais, ao se separar, tenham condutas de revanchismo e vingança, cada qual marcando território e poder. O Estado, por meio da justiça, só é convocado quando fracassa a ética na família – casais em que impera o espírito de competição e não de cumplicidade e colaboração. Resistente e ressentido com a separação, o parceiro inicia o processo de chantagem e manipulação. Sem escrúpulo, usa o filho em sua jornada de vingança, colocando-o contra aquele que pediu a separação. Nesse momento, os adultos, seja o pai ou a mãe, agem de forma infantil e inconseqüente. Pais magoados e rancorosos destilam ressentimentos sobre os filhos. Quando envolvem vinganças e condutas perversas, separações provocam sofrimento psíquico nos filhos, comprometendo seu futuro.

A questão não está na separação, mas no despreparo do indivíduo para enfrentar perdas e frustrações. Ninguém gosta de perder. A sensação de desvantagem, embora avassaladora, é da condição humana. O sentimento de preterido pelo outro é cruel. Essa dor nos derruba, deixando-nos com gosto de morte na boca. Com a alma seca, mendigamos afeto e amparo. Perder é se ver cara a cara com os limites da vida.

É importante lembrar que, para a criança, não existe pai ou mãe ruim, ambos são queridos e devem continuar sendo merecedores de um lugar no coração do filho. Cabe à mãe instituir o pai ao filho, é ela que o apresenta a ele, portanto, a imagem que o filho tem do pai é constituída enquanto tal pela palavra da mãe. Contudo, muitos pais não poupam os filhos e os envolvem na pletora de brigas e revanchismos. A separação de casais, por envolver crianças no conflito, é questão que o direito de família trabalha na interface com a psicanálise.

Ao reforçar a importância do direito na defesa dos interesses das famílias e na proteção dos direitos dos filhos, aplaudimos a Lei da Alienação Parental, que pune os responsáveis pelas crianças – mãe, pai, avós – que agirem desqualificando e dificultando o contato do menor com um dos responsáveis. Lembramos que o direito do filho ao carinho dos pais é inalienável.
A partir do século 18, com o iluminismo, o direito passa a ser identificado com a lei. A proposta, embora retome aspectos do direito natural e defenda a liberdade individual, acaba por privilegiar a razão, reduzindo o viver em sociedade num governo de leis, e não num governo de homens. Portanto, se a lei é injusta, se ela favorece os interesses dos pais e não da criança - se o que ela reza compromete o desenvolvimento cognitivo e psíquico, pouco importa. Essa é a vontade da lei, da razão científica. O racionalismo científico, em sua vertente positivista e não dialética, revela a face cínica - manipula e defende interesses escusos. E deve ser enfrentado numa perspectiva multidisciplinar. A questão é interrogar o sujeito que, imerso num rancor perverso, julga natural prejudicar o filho comprometendo sua saúde psíquica. Muitos, enlaçados num narcisismo patológico e mergulhados num gozo eterno, julgam-se donos da verdade.
O princípio de liberdade individual preserva a família e os filhos numa ordem ética e jurídica, independente dos caprichos de esposas e maridos. Talvez o deslocamento do familismo para o individualismo explique os conflitos nos processos de separação – momento em que modernidade pode representar mais perigo que salvação. A família é muito mais que organização biológica, transcende o grupo doméstico e penetra no campo simbólico.

Grande parte do que somos é efeito da convivência familiar. Nos lares monoparentais, geralmente, há excesso ou falta de mãe. Mães que não são barradas em seu desejo em relação ao filho ou que o abandona nas mãos de babás e escolinhas. Como diferenciar o impulso de se ter um filho do desejo de cuidar e se dedicar à criança? Maternidade e paternidade são escolhas. A sociedade, muitas vezes, por ainda conservar um viés antropocêntrico, incentiva e desobriga o pai de exercer o papel de educador. Toda criança exige cuidados - alguém tem que assumir a responsabilidade de educá-la e cumprir com o dever paterno e materno. Quando algo falha, quando um dos dois deixa de cumprir tal função, entra em cena o direito, cobrando dos pais o direito que o filho tem em ser acolhido, acariciado e educado. São funções irrevogáveis que o direito se encarrega de impor quando a obrigação ética fracassa.

O Código Civil alemão, de 1900, diz: “O direito matrimonial não deve dominar o princípio de liberdade individual, mas se deve considerar o casamento como uma ordem ética e jurídica independente da vontade dos esposos”. Com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, é comum casais se separarem e os filhos ficarem meses sem se encontrar com o pai ou com a mãe. Prevalece a idéia subjetiva e individualista dos direitos. O individualismo e o consumismo comprometem a função social dos pais.

InezLemos – Graduada em história/UFMG, mestre em educação pela FAE/UFMG e psicanalista. Autora de Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).

Artigo publicado no caderno Pensar em 19/02/2011