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e entusiasma a alma.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

NÁUFRAGOS DO AFETO

Inez Lemos

Amor? No documentário de João Jardim, mulheres e homens revelam passagens de relacionamentos afetivos que envolvem violência. O título aparece em interrogação. Devemos investigar por que, cada dia mais, o amor tornou-se personagem de histórias de violência, crimes e tragédias. Muitas são as formas de expressar sentimentos. Somos uma multidão que briga pela felicidade dentro de nós. Ninguém está exigindo uniformidade no amor. Contudo, o que questionamos é a hegemonia da violência que nos atinge. Por que estamos nos tornando uma sociedade que cultua a violência, a competição e não o afeto e a lealdade? Que leitura devemos fazer da parceria entre amor e violência?

Amor sex shopping, amor fast-food, amor científico, amor químico. Muitas são as estratégias sociais utilizadas para manter o indivíduo sobre controle, quando ele, longe dos verdadeiros sentimentos, fantasias e emoções, se transforma em um pote vazio, disponível para o mercado. Hoje, para ser um bom amante, ele deve se empanturrar de viagra, bebidas e filmes pornôs. A garota deve carregar na bolsa os suportes adquiridos no sex shop. Nada pode faltar quando os parceiros decidem a transa como se decide uma entrevista de emprego, pressionados pela obrigação de gozar. O tesão não é energia sexual que brota de cronogramas, é libido que gosta de liberdade e surpresas. É sangue que jorra do coração aos órgãos sexuais - alegria que flui e garante a aventura do encontro. Talvez o que esteja brochando a moçada, a ponto de recorrerem aos aditivos narcísicos como drogas, álcool e medicamentos, é justamente a cobrança por performance - todos de olho no desempenho, na potência sexual. Esquecemos que gente é diferente de máquina. Somos movidos a pulsões, energia ligada e comandada pelo inconsciente - marcas e imagens que se fixaram desde que nascemos.

A sexualidade sofre com o excesso de planejamento. Tudo deve ser passivo de avaliação, codificação, padronização. Todo sentimento, todo tesão é enquadrado, explicado. Não há mais espaço para o espontâneo, como era o amor nos versos do poeta. O amor de agora não bate na aorta, não constipa, tampouco vira o mundo de cabeça para baixo. Há uma determinação rígida sobre a vida sexual, sobre o uso do corpo. Muitos homens reclamam do excesso que brocha: “Estou cansado, exaurido, tenho que beber todas, comer todas as mulheres que estiverem dando moleza, todos os corpos que se oferecem”, desabafa F, ao se ver no tédio contemporâneo.

Como explicar a falta de emoção, o desinteresse de muitos jovens em construir uma relação afetiva duradoura? Diante das promessas de felicidade apregoadas pela mídia, qualquer ser normal se sente brocha e incompetente na condução do desejo sexual. O que fazer com o desejo de amar, de afetar e ser afetado pelo outro? O amor precisa de tempo para se enroscar em afagos, bem diferente do amor performático, quando o que conta é “saber se mandou bem”. O que fazer quando somos pífios na cama e fora dela, não conquistamos salários para carrões e noitadas regadas a vinhos? Não temos o flat que as mulheres sonham, não garantimos orgasmos múltiplos e desconfiamos que não construiremos a casa de campo no condomínio da moda.

Diante de tanta insatisfação e frustração, o jovem que antes vivia tranqüilo e feliz começa a se inquietar e agir de forma agressiva, arrogante e intolerante. Muitos confessam que viver tornou-se um peso - o rol de obrigações e exigências aumenta a cada dia. Temos que portar iPad e outras quinquilharias tecnológicas de última geração, a despeito de sermos tachados de arcaicos ou fora de catálogo. O jovem que não se inclui nos rigores da tecnocultura, acaba, muitas vezes, apresentando sintomas que revelam vergonha e humilhação. Discriminação e desigualdade incentiva revolta. Quando não acompanham as determinações de consumo, geralmente agem movidos pelo mal-estar. Frustrados e incomodados por ser verem limitados e sem acesso aos últimos lançamentos, usam de violência. De forma bruta e insana, muitos tentam adquirir de forma descabida ou criminosa. Será que a sociedade que apregoa que “só há vida possível afinada e conectada aos ditames do mercado”, não propicia revolta e, consequentemente, criminalidade?
Como desvendar a sutil conexão entre consumo e criminalidade? O jovem, ao crescer cultuando mais máquinas que gente, mais aparelhos que corpos, ouvindo mais a mídia que os pais, acaba por se distanciar da capacidade de amar, trocar e se envolver? Será que estamos educando-os para o amor? Muitos estão aprendendo a amar na virtualidade. Não vejo os pais preocupados com a felicidade amorosa dos filhos, como os vejo preocupados com o futuro financeiro destes. Geralmente, eles ficam com aparelhos ligados emitindo pontos de vista e informações - saber pautado por interesses externos. Grande parte das famílias delega a educação dos filhos a terceiros - elas próprias são seguidoras fiéis dos modismos defendidos pelo mercado. Sabemos que os meios de comunicação de massa transmitem informação. Informar é diferente que formar - estimular a busca pelo saber. O compromisso deles é com a notícia que vende, não com a verdade.

Quanto mais estimulamos a aquisição por objetos de consumo, mais corremos o risco de educar os filhos alheios aos conceitos de civilidade e respeito ao espaço público. Cresce, a cada minuto, a intolerância por qualquer situação que restringe ou se oponha à trajetória do prazer. Tornou-se comum, ao mínimo olhar de reprovação, agredirmos o outro. Poucos suportam serem contestados, criticados. Se, desde pequenos, não somos interditados nos excessos, frustrados nos caprichos, como conviver com os não que a vida nos impõe? Como descobrir que o mundo não gira em nossa volta, e que felicidade é construir laços sociais e afetivos sólidos? Se a violência surge como resposta à contrariedade, a algo que não se sucedeu tal como gostaríamos, concluímos que, ao em vez de educarmos para o amor, educamos para a agressão. Somos seres pulsionais e obedecemos aos seus comandos. Contudo, se desde criança não formos coibidos e limitados nos impulsos, crescemos agindo como animais. Fera solta e livre para sanar as feridas como melhor julgar. Na medida em que cresce a frustração, cresce a criminalidade.

Há algo que fracassa, algo que não se cumpre. O ato da compra opera no indivíduo satisfação transitória - quanto mais consumimos, mais escancaramos a cratera interna. Fenda difícil de enganar. Como repensar o modelo de felicidade e questionar a crença maldita de que, quanto maior a riqueza material, maior as chances de uma vida feliz? Em A arte da vida, Zygmunt Bauman nos alerta: “Na pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada. Os pretensos meios se transformam em fins: o único consolo disponível em relação ao caráter esquivo do sonhado e ambicionado “estado de felicidade” é permanecer no curso; enquanto se está na corrida, sem cair exausto nem receber cartão vermelho, a esperança de uma vitória futura se mantém viva”.

Estamos nos especializando em oferecer às crianças o que elas não querem e tampouco, precisam. Assim, as viciamos em esperar a recompensa nos objetos e não nas relações afetivas e vivências amorosas. Às mercadorias, cabe garantir satisfação aos filhos. E aos pais, diminuir a culpa por não lhes oferecer bens “que não se pode comprar”. Aos arautos da vida moderna, arquitetada no consumismo, interessa incrementar, cada vez mais, a indústria da infelicidade. Ela, ao gerar insatisfação, gera rentabilidade - faz a roda do comércio girar. Vende-se de tudo para aplacar a tristeza de se saber frágil diante de exigências e determinações. Frustrados e humilhados diante dos que desfilam fantasiados de bem sucedidos, muitos jovens se consolam nas drogas - estratégia ao amenizar e anestesiar a dor do fracasso. Poucos percebem que o fracasso é, muitas vezes, social e não individual.

Amor ou descaso? Não estaríamos presenciando uma política de descaso aos bons sentimentos? A quem interessa disseminar a descrença no amor - a crença no dinheiro como responsável pela alegria de viver? Não estaríamos traindo os filhos ao induzi-los a acreditar em mais esse engodo? É comum ouvirmos crianças reivindicando a presença dos pais e, quando estes se justificam dizendo que não podem atendê-las e que precisam trabalhar o dia todo para supri-las de objetos, elas respondem: “eu não quero nada, eu só quero você”. De onde se conclui que somos todos náufragos do mesmo barco. Compensamos e redimimos a culpa nos substitutos compráveis. Quanto mais caros, mais nos garantem alívio. Conseguimos empenhar o nosso dinheiro numa ilusão, como se fosse possível oferecer objetos no lugar de bens que só podem ser realizados pessoalmente, só vingam mediante trocas humanas, regadas a emoções e intimidade.


Artigo publicado em 7/05/2011