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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

QUEM FAZ O AZAR?

Inez Lemos


Quem está meio desanimado da vida, achando-a monótona, deveria ir ao cinema e assistir a Um conto chinês. Aparentemente despretensioso, devagarzinho esse filme nos cutuca. De pronto, somos arrastados para a tela e, inesperadamente, a vida vai ganhando sentido. A trama se passa
entre Roberto (Ricardo Darín), solitário e mal humorado comerciante argentino, e Juan (Ignacio Huang), chinês que não fala espanhol e está em Buenos Aires em busca de um tio, mas nunca o encontra. Roberto é surpreendido com Juan sendo expulso de um táxi e se solidariza com o rapaz perdido. Os dois habitantes do acaso tentam se entender sob o mesmo teto. Os gestos traduzem a aflição e o desassossego de ambos - vida que chega e impõe seu lado extraordinário, pouco ordinário.

Há um charme nas produções argentinas. Histórias consistentes, saborosas - garantia de boa escolha. Filmes que partem de fragmentos da vida cotidiana, lentes que exploram detalhes
obscuros, sintomas velados – obsessões, fantasias não investigadas. Roberto tem seu lado obsessivo, cáustico, amargo. Não suporta ser passado para trás, ludibriado. Trauma de uma guerra maldita, absurda. Gostamos de ver nossos dramas retratados pela dramaturgia. O miúdo da vida, o sofrimento corriqueiro –solidão, pessimismo, desalento, azar. Somos o que sentimos. Para falar disso, os argentinos estão afinados, acertaram a sintonia ao transformar tragédia humana em arte. A emoção, quando estruturada em ficção, não tem erro.

O encontro entre Roberto e Juan aponta para o casuísmo, os acasos que, por apego excessivo ao arrazoado, geralmente dispensamos. Roberto, como todo bom individualista, resiste em abandonar o conforto da mesmice e acolher a visita indesejada. Rotina empobrecida do comerciante que vive o desalento de um cotidiano vazio: trabalho, casa e visita à mãe ao cemitério. Lastimando o desastroso destino, julga-se azarado, pois não consegue se desvencilhar do rapaz. A aparente tranquilidade, que mais era uma sucessão de dias mortíferos, aos poucos toma forma e ganha cores, vida. Quantas vezes, em nome de um conforto ilusório, sacralizamos o tédio do dia a dia? Aventura humana é desatar nós que nos emperram e que dificilmente conseguimos sem ajuda.

O novo é desafio - mexe, mistura, movimenta e desestabiliza. Intervir no estabelecido pode ser um ganho. O diferente chega trazendo cultura e sensações inusitadas. É oportunidade de
descobrir outros cantos da vida, de questionar as prisões que nos habitam. Roberto fingia que estava confortável com seu passado. Numa cristaleira, entre retratos e bibelôs, reverenciava a imagem petrificada da mãe. No santuário, conservava, cristalizados, os sentimentos de família - lembranças que cochilavam no coração. Juan, num ato desastrado, derruba tudo. Espatifando, de
uma só vez, a permanência imutável da mãe. Quebrar, interromper um sentimento e permitir que um novo se instale. Roberto recolhe os cacos e, num gesto de sabedoria, entende a metáfora – liberta-se da memória paralisante. Geralmente, nos momentos difíceis, quando somos surpreendidos por um fato trágico, nos julgamos azarados. Com o tempo, o que era azar vira sorte. Refazemos e libertamos dos entulhos, lixos interiores. A faxina exige coragem, despoja-mento e humildade. Ao abandonar o lugar da vítima - o desafortunado que teve que abrigar um oriental que sequer fala a sua língua, Roberto inicia trajetória de descobertas. Cultura chinesa, surpresas, emoção. O mundo e sua vitalidade e diferenças, há dias, dividiam com ele o mesmo teto. Diante de Juan, começa a desconfiar do sentido de viver. Entre eles, travando amizade e afeto, a vaca redentora –que mata e que une. Tudo começa e termina com ela, metá-fora do azar e da sorte. A mesma vaca que lança Juan na solidão propicia os encontros – tanto com Juan, como com a mulher que o assediava com promessas de dias felizes. Vida, o que fazer senão com ela deslizar?

Muitas vezes, lamentamos a solidão sem nos responsabilizar por ela. Não compartilhamos pedaços da vida, e não é porque não há ninguém que queira nos acompanhar. Pelo contrário, estamos sós por não abrirmos espaço para que o outro entre e se expanda. Culpamos a falta de sorte, o mau destino. Responsabilizar o acaso é mais fácil. Sem nos implicar, não nos damos trabalho e, ainda, ganhamos o lugar da vítima. Viver é bem mais que rezar para que “tudo de bom nos aconteça”.

Roberto acaba, a duras penas, se implicando no encontro com Juan. Quando isso acontece, tudo ameniza - angústias, impaciência e falta de sentido pela vida. Se anima e resolve procurar a moça que lhe declarava amor. Assim somos todos, só temos olhos quando despertamos por dentro. Sem esse apito, fingimos que vemos as pessoas à nossa volta. Mentira. Apenas enxergamos quando somos cutucados com os olhos do coração. Olho de dentro é que comanda. Enquanto isso não acontece, o outro é apenas enfeite, um guia para não virarmos o pé – pois, quase sempre, pisamos em falso.

O filme se inicia com uma notícia esdrúxula, descabida. Como a vida real: desatinada, injusta e desleal. Ansiamos por lealdade, companheirismo, amparo. Somos obsessivos por um Deus, alguma divindade que nos garanta a felicidade que julgamos merecer. Esquecemos que
viver é topar a parada, lançar-se no jogo. Um jogo obscuro, que não estabelece regras. É pegar ou largar. Ou Roberto topava a parada, ou desistia. Mas algo o impediu de desistir. Assim é conosco, muitas vezes seguimos em frente com o jogo, sem saber por quê. Mesmo desejando interrompê-lo, algo nos impele. É exatamente nessa força que reside o charme da vida. Encarar o inusitado, o acaso, ser salvo por experiências diferentes. Se acovardamos, cristalizamos emoções desgastadas.
O apaziguamento chega para Roberto no momento em que abandona o registro do lamento e se envolve - decide ouvir Juan e vencer a barreira da língua. Dialoga com as circunstâncias que a vida coloca. Ao se despir do apego individualista, Roberto abre uma avenida. Antes vivia no beco, sem saída. Quem se implica não reclama e se coloca dentro.

Explicar, justificar, tentar nos convencer de que agimos certo, fizemos o melhor. Assim operamos, quando não queremos nos haver com as questões que nos afligem. O filme nos aponta para os pequenos detalhes da vida. É quando cada qual, aproveitando os ingredientes que ela nos oferece, cria seu conto, escreve o próprio enredo.

O mundo moderno, tecnológico, não gosta de se ocupar com o outro. Circulamos alheios, não nos implicamos no cotidiano que desaba à nossa volta. O filho vai mal na escola? Culpamos os professores ou a criança – dificilmente questionamos como conduzimos a sua educação. Se somos vítima de alguma violência, raramente nos interessamos em investigar o que motivou o indivíduo a agir assim. Preferimos julgar, condenar e impingir a sentença de morte. Contudo, se vivemos em sociedade, devemos interrogar qual é a parte que nos cabe neste “latifúndio”. Somos todos severinos da mesma seca, do mesmo sertão - habitamos o mesmo deserto. Estamos
condenados às mazelas da condição humana. Somos incompletos, precários. O dente dói na boca, tanto do rico ou do pobre. A chuva derruba barracos e mansões.

Quem faz o azar? Geralmente, sempre que algo ruim ocorre, saímos em busca de um culpado. Gostamos de transferir responsabilidades. Isso consola e alivia, mas dificulta, retarda o curso da questão, pois nunca somos protagonistas de nosso próprio azar. Como iniciar o
processo de superação? Se estamos estressados, deprimidos, é o trabalho que está massacrante, ou o marido que deixou de ser carinhoso. Certamente, sem mudarmos de posição, sem abandonarmos o lugar da vítima, o azar prosseguirá.

A vida é sutil - reserva de mata virgem que merece ser explorada com a alma plena de entusi-asmo. É para ser amada em demasia, a ponto de desejar mais que ter sorte e sermos felizes. Como acolher uma existência, uma trajetória que não nos poupa esforços? A arquitetura da vida como obra de arte bate nas entranhas, aninha-se, mexe e remexe. Exige, briga e reivindica. Vida que se reinventa não se acovarda, encara as paradas. Deparar com situações difíceis e problemá-ticas faz parte da caminhada. Julgarmo-nos azarados. Lamentar e se sentir derrotados já é uma questão de escolha. Sorte ou azar, quem os faz?



[1] Artigo
publicado no caderno Pensar do E.M. em 3/12/2011.