Bem-vindo

Amor urgente e necessário chega de graça,
e entusiasma a alma.

segunda-feira, 20 de maio de 2013


GERAÇÃO TARJA PRETA[1]
Inez Lemos
            Acredito ser papel dos intelectuais anunciarem as mazelas de seu tempo, como bem fez Roseli Fishmann, professora da Universidade de São Paulo (USP), ao denunciar os perigos que a “geração Ritalina” está sujeita, tendo em vista o aumento do consumo da medicalização em substituição a processos educacionais mais plenos – uma solução aparentemente confortável para as famílias, escolas e sociedade. Todo educador deve prevenir os pais ao desconfiar que o caminho apontado como saída coloca a saúde do estudante em risco. Ao debater o uso de Ritalina e congêneres, devemos estender o olhar à cultura a que estamos submetidos, e que reforçamos quando exigimos, de forma obsessiva, que os filhos potencializem o desempenho escolar.    
Quais as conseqüências, na saúde psíquica dos filhos, de pais ansiosos por resultados, e que exigem rendimento escolar a qualquer custo? Muitas crianças estão crescendo entre adultos aflitos e estressados. Sociedade ambiciosa, competitiva, crianças inquietas, irritadas, hiperativas. Pesquisas apontam que o consumo de Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes. O medicamento, composto de metilfenidato, tem sido indicado no tratamento de TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Crianças indisciplinadas em casa ou na escola, que manifestam algum incômodo ou desajuste, ou não correspondem às expectativas dos pais ou professores, tornam-se candidatas à “droga da obediência”. 
            A proposta é alertar pais e educadores para a necessidade de ampliar o olhar sobre o sintoma, questionando diagnósticos apressados. Antes de empurrarmos as crianças ao abismo, lembrar que os efeitos colaterais de tais medicações são tenebrosos. Qual o futuro de uma criança que, desde cedo, é submetida a drogas tarja preta que atuam no sistema nervoso central, gerando dependência física e psíquica?
            Vivemos num mundo marcado pela pressa e pelo barulho. Muitas famílias adoram levar os filhos para almoçarem, aos domingos, nas praças de alimentação dos shoppings - lugar pouco ameno e tranquilo. Muitas casas acordam com a TV ligada em alto volume. Poucos zelam pelo silêncio - cuidado em proporcionar às crianças clima sereno, propício aos estudos e à reflexão. Geralmente, não gostamos de parar o que estamos fazendo para ouvir o filho, acolhê-lo. Infância é lugar desamparado e povoado de fantasmas. Contudo, o que essas crianças estão querendo dizer com as inquietações? Hiperatividade? Que barulho é esse?
            Muitas vezes, a criança chega à escola atravessada por conflitos, angústias, pressões. Entram na vida das cobranças despreparadas, desavisadas. São empurradas, sem defesas, à lógica do custo/benefício. Logo soltam o grito de socorro: “Se com vocês o que interessa é obedecer sem questionar, cabe a nós, descontentes, manifestarmos o protesto - seja pela desobediência ou pela inquietação, importa avisar que assim não rola”. Qual a forma exata que uma criança, insatisfeita e incomodada com a sua vida, deve se comportar? Onde que elas estão aprendendo a serem ansiosas e estressadas? A quem interessa a homogeneização, o silenciamento dos incômodos? Será que a mordaça, que antes era imposta pelos governos autoritários, deslocou-se para os lares e escolas?
            Além das controvérsias sobre a medicalização, muitos especialistas questionam a veracidade dos diagnósticos, denunciando a banalização com que são realizados. Será que estamos sofrendo os efeitos de um saber científico que, motivado por interesses econômicos, conspira contra a saúde da humanidade? Uma rede de serviços, orquestrada por um conjunto de iniciativas, apostam, cada vez mais, na produção de diagnósticos que, outrora, eram desconhecidos. Panicados e transtornados, devemos todos exibir a carterinha, a senha de dependentes de drogas lícitas - candidatos a um futuro morto.
            Domar a lucidez em troca de uma falsa felicidade, triunfo diabólico dos psicofármacos. Um elogio à loucura, um retorno à nau dos loucos, pintada por Bosch, ao ilustrar os desajustados encarcerados em navios. Recurso medieval no tratamento dos que extrapolavam, fugiam às regras. Tratar todos sob um mesmo diagnóstico, uma mesma química, sem dar ouvidos à “locura” que cada um de nós carrega, é no mínimo perverso.
Quem nos diferencia, nos singulariza, é o sintoma. Ele diz do sujeito - seus anseios, fantasias, frustrações. Sinal, alerta que o corpo emite tentando dizer daquilo que não vai bem. Ele é salvação quando enfrentado com sabedoria e investigadas as razões - diferente de tamponá-lo com medicamentos. “A loucura não está mais a espreita do homem pelos quatro cantos do mundo. Ela se insinua nele, ou melhor, é ela um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. Assim, Foucault, em História da loucura, rompe o mistério, o obscurantismo que rondava a loucura, tratando-a como manifestação subjetiva. O importante é que investiguemos as doenças e suas metáforas, o que elas representam no mundo atual.
            O verdadeiro espetáculo advém dos delírios, quando deitamos e deixamos o pensamento voar, fantasiar. O renascimento rompe com as leis, os dogmas irracionais do teocentrismo. Hoje, contudo, quando o homem é tratado como coisa, não estão nos garantindo grandes vantagens. O poder de manipulação se apresenta em nova roupagem, nova nosografia.  O mal não é o fracasso da criança diante do que se espera dela, mas impedir que ela participe do tratamento, entenda o processo, apreenda as fases da vida. Tratar – falar, desvelar a verdade sobre si mesmo. O saber científico produz discursos com efeito de verdade, drogas com promessas de cura. Delegamos à medicina a saúde das crianças - a ela cabe normatizar nossas vidas. Estamos governando os afetos e as emoções como se fossem um fígado, um rim.  O olhar técnico impõe sua lógica.  Desterritorializados dos sentimentos, ingressamos numa existência artificial.  
            Será que existe uma ordem maldita na qual devemos nos espelhar ao educar os filhos? Ao incorporar o discurso médico sem questioná-lo, validamos as práticas  irresponsáveis do mercado. Zelar pela saúde dos filhos é trabalhoso - demanda dedicação, paciência e esforço. É estender o olhar sobre a família e a sociedade. Desresponsabilizar a cultura - pais, escola, práticas sociais, é, no mínimo, leviandade. Onde há grito e sofrimento, devem-se levar atenção e cuidado. Educar exige implicação na dor do outro, senão transformaremos sintomas em transtornos, doenças crônicas.
            Interessa chamar a atenção dos pais e educadores para o fenômeno. Propor que, antes de optar pela medicalização, que esgotem outros caminhos. Oferecer às crianças oportunidades, espaços onde possam entrar em contato consigo mesmas. Apostar nas múltiplas facetas do ser humano – carregamos uma multidão de interesses e habilidades a serem exploradas. No lugar de posturas desumanas, vivências intensas, consistentes e que honram a aventura humana. O contato com as entranhas, com o âmago, propicia êxtase. Vontade de gostar da vida. Ao acariciar o temor que espreita a infância, aplacamos a insegurança e promovemos apaziguamento. Interpretar os berros com ternura silencia a alma inquieta. Convoca as divindades necessárias, diante do desafio de educar uma criança. Já o barulho promove estresse, inquietação, agressão.
            Estamos nos pautando pelo discurso de uma ciência erigida na rentabilidade e que reduz o homem num ser biológico. Fugimos do mal-estar, optamos por tratamentos em que não somos convocados, não participamos do processo de cura. Transferimos aos filhos a mesma postura irresponsável diante das manifestações de sofrimento. Devemos refazer o olhar, inundá-lo de poesia, reformulando posturas e expectativas. Dar tempo  às demandas internas. Vida louca, chata, sem sentido. Crianças aborrecidas, rebeldes. Pressa, pressão. O mundo moderno desabou sobre nós murchando o sonho de vida feliz, enfraquecendo a autoridade dos pais e ampliando os focos de violência e epidemias.
Com a sacralização das especialidades, perdemos o elo da totalidade, o gancho com o estranho mundo dos sentimentos. Não há sintoma fora de contexto, pensamento isolado, escolas desconectadas da cultura. A dança é complexa e exige interação de seus pares. Pais, lembrem-se que a maior conquista do homem é cunhar sua liberdade e autonomia. Com coragem, recusar a barbárie, o olimpo dos tolos - os preguiçosos que seguem pegadas alhures, estranhas. Educar é abrir o coração ao filho, prepará-lo para o salto à cultura, à expansão do mundo. Desobstruir estradas, desmatar veredas. Esperança é crença boa, é escutar a vontade que chega de dentro - conquista necessária.                     
             



[1] Artigo publicado em18/05/2013 no caderno Pensar do EM.

segunda-feira, 13 de maio de 2013


FELICIDADE E UTOPIA
Inez Lemos[1]
           
Os filmes O porto e As neves de Kilimanjaro cumprem o papel fundamental de plantar a esperança nos corações desamparados de ética, solidariedade, respeito ao outro. Vivemos a época em que a culpa por prejudicar ou maltratar uma pessoa é banida do cotidiano narcísico - descabido e furioso em sua meta por sucesso a qualquer custo. Filmes como esses ajudam a suportar a aridez que permeia as relações humanas, quando elas são conduzidas pelo imperativo do lucro. Ganhar, adquirir, acumular - significantes que, juntamente com dinheiro, tornaram-se representantes mestres do erotismo contemporâneo.  Se todo neurótico é um escravo submisso em busca de um mestre, e se a sociedade atual oferece o ideal de ostentação material como significante mestre, quem não se insere nesta pletora de valores, acaba se sentindo excluído, esquisito. O mal-estar dos desajustados é reforçado pela descrença nos rumos da humanidade.
            Os dois filmes, ao elegerem a solidariedade e a sensibilidade como protagonistas, reafirmam que a vida que exala sentimento e emoção - a que brota de dentro e emana intimismo, cumplicidade, é a que satisfaz. Ambos reverenciam sentimentos que estão escapando da fantástica aventura humana, quando viver é experimentar, junto ao outro, as surpresas que a vida nos reserva. Quando o dinheiro torna-se mais sexy que o sexo, quando assistimos o mercado atuar com força suficiente para nos cooptar em projetos de cunho apenas financeiro, quando viver é ser acionista, empreendedor ou proprietário, descobrir filmes que reverenciam o amor ao próximo é como descobrir cachoeiras no deserto.
            O objetivo de evocar a importância de diretores como Aki Kaurismaki (O porto) e Robert Guédiguian (As neves de Kilimanjaro) é registrar o apelo, um pedido de joelhos para que não desanimem, não desistem em continuar esticando o fio da esperança aos desamparados - os desesperados diante da pouca perspectiva de mudança cultural. Para a massa faminta de lazer, que foi induzida a confundir entretenimento com cultura, ir ao cinema significa se estarrecer com violência e barulho, regados a Coca-Cola e pipoca. As salas tornaram-se lugar de comida e banho de adrenalina. Muito diferente da profundidade dos filmes que nos conduzem, sutilmente, aos mistérios que cercam a existência humana. Sabemos que, quanto mais circulamos fora de nossa subjetividade, mais convocamos o vazio. E não é por acaso que o mercado explora a incompletude - falta ôntica que clama por objetos e move a roda do consumo. E assim claudicamos, consumindo os lançamentos dos lixos culturais - cinematográficos ou televisivos.  
            A felicidade está na moda. E foi tema da Conferência de Bem-Estar e Felicidade das Nações Unidas. Agora os países querem disputar quem ganha o ranking no Relatório de Felicidade Global. O Japão ocupa o 44º lugar, perdendo para o Brasil, que figura em 25º. O interessante disso tudo é que os resultados colocam em xeque os índices de desenvolvimento das nações - são insuficientes para garantir o grau de satisfação da população. Ou seja, felicidade, satisfação, alegria de viver não dependem apenas de desenvolvimento e progresso material ou tecnológico. Tudo que não falta no Japão é avanço técnico. Então, afinal, onde se esconde essa tal de Felicidade? É possível satisfazer o desejo humano? Lógico que não tenho a pretensão de me meter num debate desta dimensão, mas gostaria de arriscar um palpite.
            Todos os dois filmes se passam em lugares simples, com pessoas pouco sofisticadas, sem grandes padrões de consumo. No entanto, destacamos a forma como os personagens se interessam pela alteridade – o imigrante africano ou o desempregado que resolve assaltar como recompensa às perdas. Ao permearem um cotidiano rico em experiências, ao adentrarem a intimidade dos que sofrem, conferem sentido às suas vidas. A partir do momento em que os protagonistas se colocam no lugar de precariedade do outro, eles encorajam e assumem o desejo de fazer o bem. E convictos de que, tentando ajudar esse outro - excluído e injustiçado, eles poderão se sentir melhor – aliviados e felizes. Vários filósofos proclamaram que, isoladamente, prosperidade econômica e sucesso financeiro são insuficientes para fazer alguém feliz. No começo, pode até seduzir, mas logo o sujeito acostuma com o lugar de conforto e privilégios. Tanto é verdade que cansamos de ver pessoas ricas, com alto padrão de consumo, lastimando a vida - sempre buscando motivo para reclamar.
            Contudo, somos treinados para respondermos àquilo que esperam de nós. Se somos estimulados à cobiça, à gula dos insatisfeitos, se desejamos o poder, é porque crescemos dentro deste ideal de mundo. O meu desejo é o desejo do Outro. O outro do mercado – o empresário que hoje controla a alma humana. E como ele tem pressa, acabamos por tentar atender o desejo de gratificação de forma rápida. É o mundo de olho nos efeitos dos Big Brothers. E deparar com a perspectiva de não ganhar, é cair na ansiedade, insatisfação e frustração. O que fazer com a crença de felicidade como realização pelo próprio esforço? Como saborear a conquista, se o alvo é a chegada e não a travessia? Como nos desvencilhar da idéia de que não há satisfação maior que se compare com o ganho merecido?
            O debate visa questionar a proposta de felicidade apregoada pelo capitalismo. É assustador como a idéia de sucesso financeiro vem ocupando os espaços da existência humana. Enquanto sabemos que a questão está em resistir aos ímpetos de realização imediata - a ânsia por satisfação é uma sanha infindável. Felicidade é sentimento subjetivo e deve ser cunhado lentamente, passo a passo, em consonância com as marcas - insígnias que habitam cada um de nós. Cada qual, ao longo de sua trajetória, colecionou lembranças, atavismos – somos um pouco de tudo que vimos, ouvimos e sentimos. Não é possível querer nivelar a humanidade em índices, colocar todos dentro de uma só tabela, sufocando singularidades, interesses e idiossincrasias. Isso sim é quimera. Felicidade acontece quando é sonho a ser conquistado - quando a ele empenhamos sentido, tempo e esforço. E com perseverança, submetemos às pelejas - suor na nuca e coragem na alma.
            Se a dificuldade faz parte do show da vida, se tudo que é bom tem que ser merecido, como entender o mundo que apregoa o sucesso instantâneo, tanto profissional como afetivo? Como aceitar a tendência em apagar a subjetividade de cada um, e no lugar imprimir uma marca, como se gente fosse mercadoria? Muitos invejam o deprimido sorridente, jovial e endieirado. Muitos vivem pressionados em ganhar a vida por meio da visibilidade. Os que não conseguem seus minutos de fama, do alto de suas fragilidades narcísicas, acabam por lançar mão de qualquer loucura como recompensa ao ostracismo existencial. Seja entrando numa seita de canibalismo – tornar-se alguém devorando um outro e se purificando. Principalmente quando esse outro é tão desprazível quanto ele. É o vazio ocupando o lugar do nada, da desesperança e da falta de utopia.  
            Importa questionar a tendência de iludir as pessoas com a promessa de felicidade fácil – querem nos vender a fantasia de que existe uma completude, um êxtase ao qual todos tem acesso, bastando ser bonito, rico e cheiroso. A beleza perfeita, o corpo irretocável. Eis o modelo excludente que acaba disseminando angústia e ansiedade. Ao contrário disso tudo, de forma corajosa e honesta, os filmes citados apontam a felicidade possível, a que moldamos no sofrimento - nos intervalos, nos hiatos da luta diária. Na peleja de se saber humano. Se o mal é prometer e não cumprir, vivemos num mundo cruel, que mais faz mal que bem. Não podemos confundir gozo com prazer. Acreditar que a nossa felicidade pode ser construída por um outro, que ela pertence ao além – que há uma magia que resolverá os problemas e nos conduzirá ao paraíso, isso sim é loucura, insanidade. É permanecer no gozo.
            Quando abrimos mão de viver a vida autêntica, quando acomodamos e deixamos de lutar pelo próprio, acolhendo escolhas alheias à nossa vontade, a vida perde o viço, a exuberância. Vida desbotada, sem combustível. A depressão, ao se tornar um sintoma contemporâneo, defraga o fracasso de apostar apenas no progresso e no avanço tecnológico como responsáveis pela felicidade. O facebook está em pleno vigor, os tablets perambulam de mão em mão. O que não faltam são meios de aproximar pessoas. Contudo, o que vemos é, cada vez mais, internautas solitários, deprimidos e descrentes de uma vida pujante - a que entranha e revela a face sublime de compartilhar com o outro fragmentos intimistas. Vale lembrar de pesquisas que certificam: os que se ocupam com projetos coletivos tendem a ser mais felizes.            
                         



[1] Psicanalista. Email: mils@gold.com.br