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quinta-feira, 6 de março de 2014

EDUCAÇÃO OU BARBÁRIE


Inez Lemos[1]

            O Brasil colonial era movido pela força dos negros africanos, tratados como animais de carga e transporte. Cabia aos escravos a função de transportar a realeza. Quando chega o automóvel, esse desponta no cenário como símbolo aristocrático, se distanciando da população, que contava apenas com o bonde e o trem. O carro segue como símbolo de superioridade social. Eis o imaginário que define a rotina do motorista que se julga superior por ostentar carro importado, reiterando a lógica da hierarquia social. É o cidadão que tem certeza de seu direito de curtir a noite, se embriagar, correr e matar.
Dificilmente nas rodas familiares os chamados “cidadãos de bem” discutem a postura do mais rico e poderoso em relação ao uso do espaço público. Qual o imaginário que permeia entre eles? Como construímos a hierarquia do rico sobre o pobre? Embora presenciemos demanda por intervenção e correção aos abusos cometidos no trânsito, sabemos que há um discurso direcionado ao outro (infrator) e um diferente quando somos nós, de melhor poder aquisitivo, a bola da vez. Situamos fora de nós o processo de conscientização que possa garantir melhoria da convivência no espaço urbano. A guerra  só se intensificará se não repensarmos posturas elitistas e racistas que reforçam o viés hierárquico. A dança é nossa, embora poucos se ocupem em lutar pela igualdade de todos perante as leis que regem a cidade.
Na moderna dinâmica social convivemos com o cinismo, a desfaçatez. Características do jeitinho brasileiro, hipócrita e obsceno - o mesmo que permite ao motorista responsável por mortes no trânsito se esquivar da penalidade. Seja comprando o policial de trânsito, a justiça ou os familiares da vítima, quando essa é pobre, negra e inferior. Como lutar e exigir punição aos criminosos, realidade que ameaça todos nós, vítimas de jovens que crescem acreditando na superioridade dos ricos sobre os pobres, do carro sobre o pedestre, do aeroporto sobre a rodoviária? Os nostálgicos do glamour imperial e escravocrata, no fundo, defendem a impunidade dos crimes cometidos por um de seus pares – brancos e bem nascidos. Lembramos que no Império fazendeiros que se opunham à escravidão eram também donos de escravos.
A mídia expõe as contradições de uma sociedade dividida. De um lado há os que se viciaram em julgar bandido apenas o menor infrator que nasceu na favela, cresceu entre traficantes, não teve oportunidade de estudar em boas escolas e, consequentemente, está na rua cobrando o que a vida lhe deve. Para ele não há outra saída senão os cárceres de Pedrinhas – amontoados de gente, ratos e torturas. O clamor por justiça e punição é ferrenho quando o réu vem do lado de lá. O grito por segurança ecoa nos jornais. Contudo, sabemos que a violência deve ser tratada como sintoma, como um aviso de que as coisas andam fora do lugar. É mais uma questão política, social e cultural do que de polícia. Nenhuma criança nasce bandida, criminosa. Ela assim se torna em função da forma como foi educada e inserida na cultura. 
Bandido é significante vazio. Uma criança não escolhe o mundo do crime por deleite, por ser raça ruim, gente imprestável, negativo social. Dificilmente, vamos à rua exigir punição para o vizinho da Zona Sul - filho de um amigo empresário. A criança que vive sob a cultura dos milicianos, que controlam a região onde vive, cresce sob a lógica da vingança e da corrupção. A lei dos milicianos, um Estado dentro de uma comunidade vítima da falência do poder público, é ferrenha. Não há segunda chance. O bom educador sempre aposta na recuperação do ser humano, quando a ele é dada oportunidade de repensar atos e conhecer o outro lado da vida. Na rua ele aprende a se defender apenas com armas, o poder dos excluídos. Enquanto que nós aprendemos o poder da palavra, da teoria, dos estudos e de uma boa profissão. O que revela que os bandidos que julgamos irrecuperáveis no fundo são humanos e carentes como nós. A diferença é que a vida é mais generosa com uns que com outros.
A vingança aos infratores, recomendada por gangues que operam à margem da lei, faz apologia à barbárie, justiça com as próprias mãos. Culpam a ação dos direitos humanos e das ONGs que defendem o direito à infância com lazer e escolas bem equipadas. Com cinismo e ironia, não vamos enfrentar essa tragédia social. No Brasil às avessas, o bandido é vítima de si mesmo. A delinqüência é efeito de uma autogestão burra e perversa. Revolta, vingança e violência. Eis o caldo que cozinhamos quando julgamos a manifestação do problema como se fosse o problema. Os fatos de forma simplista, com argumentos obscurantistas e pouco consistentes. A vida não se resume em culpar, punir e condenar. Seria fácil se a questão fosse apenas o rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade. Ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o estatuto da Impunidade, como muitos julgam.
Seja rica ou pobre, se a criança não foi bem acolhida, ou se não foi interditada em suas pulsões destrutivas, as chances de cair na delinqüência são grandes. Falta ou excesso de amor? Educar é simbolizar sobre o certo e o errado. Não adianta pressa, o ser humano demanda tempo para entender as contradições da vida e dos sentimentos. Ódio, frustração, humilhação. Sentimentos que atravessam o corpo e bate fundo o coração. Talvez esse percurso nos ajude a questionar o que tem levado adolescentes a mergulhar na violência e no crime. Uma leitura ampliada sobre o sujeito e a sociedade em que estão inseridos. Uma comunidade implicada no sofrimento dos que vive a desesperança. Diante da condenação, tão somente, o futuro já nasce morto. Interessados em investigar os atos antissociais, e sem medo de rever posturas petrificadas, é hora de nos unirmos diante do caos. Ou escolhemos educar as crianças com rigor, carinho e oportunidades, ou mergulhamos na barbárie.   
Ao atacar a epidemia da violência, deveríamos traçar linhas de condutas preventivas (longo prazo) e curativas (curto prazo). Pouco se debatem propostas preventivas que dificultam que a criança se refugie na delinqüência - propostas que abordem aspectos sociais e subjetivos. Em vez de deixar o caos se estabelecer para, então, agir de forma truculenta, melhor seria pesquisar ações efetivas que atuam na raiz da questão. A cobiça que gera violência e crime é mais a forma como o desamparado, que vive a privação afetiva, simbólica e material, enfrenta os conflitos que um mal em si. A peste que recai sobre as almas miseráveis, que cresceram cultuando a vingança (quando se é pobre), sem chance de descobrir outros motivos para se viver, senão roubar do outro algo que lhe provoca inveja e revolta. 
Outro exemplo de leviandade no trato de questões profundas é como estamos debatendo a questão da maioridade penal. Agimos como adolescentes afoitos em assegurar os anseios a qualquer custo. “Quero por que quero uma sociedade segura, onde os filhos possam circular livres dos drogados, delinqüentes e criminosos”. O rebotalho social que atrapalha o gozo dos abastados. O discurso pró-redução da maioridade penal deflagra a desfaçatez com que julgamos o fracassado, o excluído. A vida é percurso abissal, descida fecunda aos abismos da alma humana. Pouco se pode falar sobre o drama do vulnerável, sujo e fedorento, que nasceu quando não deveria, e cresceu como animal - sem noção dos códigos que regulam a vida social. Contudo, mesmo sem ser promovido a sujeito, deverá responder pelos seus atos.
Esses menores são filhos do descaso dos pais e governantes - efeito da desigualdade social, da impunidade aos corruptos que, sem pudor, lesam o erário. Dinheiro que deveria garantir uma juventude com emprego e perspectivas, além de políticas públicas eficazes como planejamento familiar, inserção em atividades culturais e esportivas. A cultura do extermínio, que apregoa a exclusão aos que incomodam, é absoluta. A solução deve ser engendrada de forma ampla, investigando os motivos que levam uma criança, desde cedo, a “escolher” o caminho do crime. Punir por punir mais revolta que recupera. A forca é o último recurso. O criminoso habita todos nós, basta deixá-lo livre, não inseri-lo nos limites da lei - metáfora paterna.  
A maldade não escolhe conta bancária, é da condição humana. Inútil querermos aplacá-la apenas com prisões, quando sua origem deve ser simbolizada. Questão  complexa e que esbarra no outro - essa relação que determina e regula o desejo. Mais   eficaz seria criarmos um movimento exigindo mudança na forma como o Brasil educa as crianças. Expandir o olhar diante do outro – estupor e vergonha que produzimos.




[1] Inez Lemos é psicanalista