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e entusiasma a alma.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

ALMAS DESERTAS

Inez Lemos[1]
  
            “A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou, sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinho no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou”.
Esse fragmento do conto Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu, adaptado para o teatro pela Cia. Luna Lunera, espalha, de forma poética e contundente, questões de aparente mediocridade e repressão que estão na ordem do dia.
            A história se passa em uma repartição. O ambiente de trabalho é retratado como o palco das fofocas e dos olhares repressores, recheados de moralismo e hipocrisia. Dois rapazes se conhecem na empresa e logo sentem uma afinidade que os une para além da cama. O foco se amplia nos papos sobre filmes, músicas, mulheres, interesses. Discretos, selam uma amizade reforçada pela solidão – ambos viviam sós. “No deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade – de certa forma, também em nenhuma outra -, a não ser a si próprios”.
            Os papos nos almoços de domingo eram regados a boleros: El Dia Que Me Quieras, Perfídia, La Barca. O encontro dos dois metaforiza descanso na loucura - as veredas dos sertões, o oásis no deserto. A solidão é marcada pela ausência de desejo, de algo capaz de inundar a alma de alegria. Era isso que Raul representava para Saul, a possibilidade de transcender o cimento, o barulho dos ônibus, as cabeças mesquinhas da repartição. Um encontro que permitia mergulho nas entranhas. Ambos abusavam do cinema e da música para se salvar. A arte é condutora de vitalidade, além de hidratar, planta entusiasmo onde impera desalento. O conto denuncia a mediocridade que subjaz a homofobia, o preconceito. O que leva pessoas a se ocupar com a cama alheia, a se interessar em investigar se entre duas pessoas do mesmo sexo há algo além de amizade?
            “Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares...Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas”. O fato se alastrou pelos corredores. Logo, foram surpreendidos pelo chefe de seção, que lhes comunica que, em função de umas cartas anônimas denunciando “relação anormal, ostensiva e desavergonhada” entre os dois, era obrigado a demiti-los.  
            Preconceito, moralismo, fofocas, maledicência - significantes que se alastram como erva daninha nas instituições. Caio responsabiliza: infelicidade, tédio, vazio cultural, vida interior empobrecida. “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. A alegria diante das afinidades que envolvem uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode provocar incômodo, inveja. Contudo, presenciamos um outro fator que vem incentivando a ira aos homossexuais – o uso político da homofobia para defender interesses econômicos.         
Ao longo da história, o preconceito foi usado pelo Estado em defesa de interesses financeiros. Durante a colonização do Brasil, Portugal escravizou africanos em nome de uma suposta inferioridade do negro – homens fortes, bons para o trabalho braçal, porém incapazes para o trabalho intelectual. Hitler, ao criar o nazismo e em nome de uma eugenia, promoveu o genocídio dos judeus, uma vez que ser judeu era pertencer a uma raça impura. Sempre teremos justificativas para exercer dominação, sempre descobriremos aspectos que operam como desculpas para excluir, perseguir e exterminar uma parcela da população.
            No caso da homofobia, presenciamos uma narrativa que tenta se apoiar na religião e explorar a importância da família ‘hierárquica’ de outrora. Na verdade, as igrejas neopentecostais estão tentando criar um fator que justifique a importância de fortalecer a bancada evangélica. Destacam passagens do Antigo Testamento e proclamam que Deus não abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na defesa da família abençoada por Jesus, é fundamental a inserção na política. A isca é jogada de forma truculenta - estratégias fascistas e terroristas são usadas sem pudor. As notícias são estarrecedoras.
“Vereador de Dourados, Sergio Nogueira (PSB), sugere enviar homossexuais para uma ilha por 50 anos”. Contudo, há pastores convocando a nação masculina a resistir à onda de boiolas que assola o país: “Está tendo uma deficiência nacional de homens, esta geração não produz homens, esse governo está efeminando os homens, os homens tem se vestido como gays, e para ser pai, rei, profeta, você precisa ter porte varonil, Deus fez macho e fêmea, fez o homem para ter macheza, virilidade, ser líder...o vetor que guia você não é a ciência, as artes, o cinema.... isso é coisa do diabo”.  
A família nuclear, geralmente centrada no pai provedor, autoritário e machista, não é lembrada com carinho por filhos e esposas. Muitos saudosistas lamentam a mobilidade das novas configurações familiares: monoparental, casal homossexual, entre outros. A casa se democratizou, o poder circula entre muitos. A idéia do homem como único detentor do falo não cola mais. Será que devemos ter saudade do pai coronel - patriarca que, com mão de ferro, comandava a família como comandava a propriedade rural? Desde que alguém cumpra com a função paterna e materna adequadamente, as crianças estarão salvas.
Apropriar-se da beleza poética da peça, ao denunciar aspectos do momento político que vivemos e que mais nos remetem à Idade Média, é uma forma de resistir ao medo das trevas. A ameaça chega prometendo noites escuras, uma vez que o capeta do fundamentalismo odeia poesia, cinema, teatro. Tudo que Raul e Saul amavam. Como combater o pensamento retrógrado, alienado - jogo político sujo, desavergonhado e perverso? Pastores evangélicos, em sua maioria, convencem os fiéis com táticas de guerra, pregam com gritos, chutes e palavras de ordem: ‘vamos derrotar Satanás’. Não se pregam mais solidariedade, tolerância, perdão, respeito.  
Ao tratar questões da sexualidade humana com religião, deslocamos o foco e enfraquecemos o debate. A homossexualidade é efeito dos amores edípicos, diz da forma como a criança foi marcada pelos pais – identificação maior com a mãe, negação do pai. Em meio à complexidade da questão, o sujeito orienta a sexualidade que, por sua vez, não resulta de uma escolha consciente, deliberada. É algo maior que a ele se impõe.    
Ninguém nasce racista, nazista, homofóbico, violento. Ao rechaçar o diferente, desdenhando, fofocando e humilhando-o, há esperança dele se retrair e perder a força para lutar. Raul e Saul enfrentaram o moralismo insano dos colegas com altivez. A rotina mortífera do trabalho não perdoa ninguém. E a fofoca é o raio de luz que rompe a solidão e a mesmice, movimentando o tédio. A alma empobrecida e solitária padece no deserto e convoca inveja, maledicência.
Caio denunciou o preconceito com paixão e entusiasmo, nada de jogar pedra no senso comum que perambulava pelas esquinas frias e sujas de São Paulo. A moçada da Cia. Luna Lunera entendeu o recado. Entra no palco esbanjando talento, simpatia e convicção na arte - espada ideal para combater o obscurantismo dos reacionários.
Os atores se entregam ao texto lembrando a importância do teatro como arte engajada, munição contra a crueldade do mundo. Reprimir, culpar, introjetar pecado e criar demônios - quantas não são as formas desumanas de conquistar o poder e ganhar uma eleição? Quão emocionante é ver jovens dedicando a vida ao teatro - apostar no belo é a forma ideal de denunciar a maldade humana. Pobreza que cochila nas almas desertas - mendigas de amor e poesia.                    
           
       
               



[1] Artigo publicado em 27/09/2014, no caderno Pensar do jornal E.M. Inez Lemos é psicanalista e consultora em educação. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

DIFERENÇAS ACIRRADAS

Inez Lemos[1]

O preconceito em relação ao pobre, gordo, feio, idoso, negro, homossexual, deficiente físico e à mulher, entre tantas outras formas de discriminação, merece debate. A exclusão é um traço da estrutura histórica que permeia as sociedades que cresceram sob a égide da acumulação de capital. Em diferentes períodos do processo histórico, a moralidade e os códigos éticos funcionaram em nome de uma razão, de uma lógica construída em nome de interesses ocultos. A maioria dos discursos morais esconde aspectos extremamente imorais. Contudo, a nossa era revive ondas de preconceito e intolerância assustadoras.
Muitos são os exemplos que apontam para o recrudescimento da violência, exemplos de intolerância que hoje se manifestam nas redes sociais. Interessa investigar a tendência em detonar as pessoas. Que ódio é esse? A intolerância que assusta é a do campo pessoal, é um ódio ao indivíduo. Qualquer atitude é uma justificativa para se jogar sobre o outro a insatisfação e a frustração. Em tempo de eleições, o debate é permeado por várias formas de preconceito. Partidos se digladiando nas redes sociais, onde o ódio é destilado numa demonstração de que, quando se trata de interesses políticos envolvidos, avançamos pouco.
Os códigos morais são inventados pelos homens, embora fundamentalistas de várias religiões se esforcem em afirmar que o discurso da intolerância resulta de decretos divinos. Hoje, o cenário político no Brasil é disputado entre pastores - muitos são os candidatos das Igrejas evangélicas. Nos anos de 1960 a 1980, uma parte do debate político, na Igreja Católica, contava com a presença das Comunidades Eclesiais de Base, que, incentivadas pela teologia da libertação, lutavam pela promoção da inclusão. Hoje, predomina uma guerra suja com a presença de pastores homofóbicos e retrógrados. O pensamento obscurantista, em nome da moral e da manutenção da família, tenta se estabelecer de forma truculenta. Trata-se de regras elaboradas em torno de interesses de um grupo que discursa em nome de Deus.
Defender uma religião ou um partido. Como diferenciar o certo do errado? Valores, interesses, posturas, crenças. Importa desvendar o que subjaz ao discurso da intolerância, ao acirramento do preconceito. Quais são as pressões, ambições e motivações que levam à defesa de um partido ou de uma crença? Geralmente, o debate sem manipulações e jogos perversos é o melhor caminho. Contudo, num país comandado, quase sempre, por um jornalismo comprometido, uma mídia tendenciosa e pouco transparente, torna-se impossível. O método da persuasão funciona quando a maioria dos cidadãos não cultiva o hábito da leitura, não pesquisa e não gosta de raciocinar a respeito de temas que envolvem a vida do cidadão. Toda eleição requer reflexão sobre propostas que atendam melhor aos interesses da maioria. Com a presença maciça da tecnologia, da internet e da televisão, as escolhas precisam ser elaboradas, debatidas, analisadas.
Qual a participação da mídia, das famílias e das escolas ao investigar o rancor que tem pautado as relações humanas? Como debater propostas, condutas e formas de convivência, respeitando o diferente? Historicamente as circunstâncias econômicas são as que mais influenciaram o discurso político e social. Conceitos de certo e errado variam conforme os interesses de cada época, eles não são naturais ou intuitivos, mas implantados por meio de pressões – via mídia, partidos ou religiões. Destaco o rancor, a violência simbólica contra determinadas classes sociais. Agressão aos médicos cubanos, a moradores de rua, mendigos, jogadores de futebol negros. Comentários preconceituosos contra cidadãos de baixa renda que, devido a uma pequena ascensão social, hoje freqüentam ambientes antes exclusivos de uma elite bem nascida e bem empregada. Vivenciamos uma crescente onda de violência social contra determinadas etnias e classes econômicas.
Exemplos recentes de preconceito contra negros, nordestinos e homossexuais colocaram em xeque o mito do brasileiro cordial, elaborado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda, como também a falácia de uma democracia racial. Para o antropólogo Roberto da Matta, o preconceito sempre existiu. Agora ele apenas está mais acirrado pelo fato de as “classes subalternas” estarem se movimentando. Nunca fomos uma sociedade miscigenada e harmoniosa. Enquanto o morro estava sob controle, cumprindo a função de reserva de mão de obra barata, as diferenças não incomodavam. A desigualdade operava como sustentação de uma estrutura social que beneficiava as classes economicamente dominantes.
A manifestação da violência na esfera pública desvela a face de um país ressentido e rancoroso diante das perdas, lugar de privilégios. Os programas de  transferência de renda e de cotas para negros, indígenas e alunos de escolas públicas promoveram a redução da desigualdade social, causando desconforto às classes abastadas. Na verdade, o brasileiro sempre cultivou o gosto pela hierarquia social, o que coloca a igualdade de direitos na ordem do insuportável. A desigualdade, em nossa cultura, sempre foi vista como natural, e a forma injusta e violenta com que as classes dominantes tratavam os pobres, um direito. Aos filhos das domésticas e dos porteiros restava um lugar social já definido, enquanto aos filhos de médicos, herdeiros de uma posição social privilegiada, eram reservados os melhores cargos no mercado de trabalho.
Para os fragilizados pela estrutura social injusta, a esperança de mobilidade social era vista como uma loteria, poucos conquistavam reconhecimento e boas condições de trabalho. O ódio se deve, muitas vezes, às mudanças operadas por programas de distribuição de renda que rompem com o gueto social a que o país estava condenado. Havia uma situação confortável, a concorrência desleal garantia, em terra, o paraíso sonhado. Mais vagas nos vestibulares e nos empregos. Em casa, boas empregadas por baixos salários. Com o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores de baixa renda, uma nova estruturação social surge, o que não é bem visto pelos conservadores - revoltados com a perda do lugar de distinção social. Com isso, a inclusão social como fator de luta é hoje uma realidade na agenda do brasileiro.     
Como não aplaudir os avanços sociais que nos aproximam do Primeiro Mundo? Contudo, o que temos é um movimento descabido, insano e inconseqüente por parte de uma parcela da população. Muitos, numa postura obscurantista, destilam o ódio diante das mudanças que rompem a separação geográfica entre negros e brancos, ricos e pobres. Sem debates nas escolas ou outros fóruns de discussões que possibilitam aprofundar as questões envolvidas, dificilmente iremos abandonar o reducionismo dicotômico - forma banal de analisar o momento histórico em que vivemos.
Como reconhecer o outro que sempre esteve distante, o diferente, como igual? E como aceitá-lo como um concorrente em pé de igualdade? Enquanto o país vivia a segregação social, a ira estava contida. Na verdade, poucos reconhecem a importância de se corrigir as injustiças sociais causadas pelas classes economicamente privilegiadas. Oliver Thomson em A assustadora história da maldade, adverte: “A segunda maior área de ilusão cumulativa tem sido a justificativa da desigualdade econômica, resumida no dístico medieval “O rico em seu castelo/O pobre no portão”. O que começa com uma ética que recompensa diferentes membros de uma sociedade em diferentes níveis, dependendo do valor de sua contribuição, em geral evolui para uma indefensável justificação de desigualdades permanentes”.
Muitas famílias, escolas e faculdades abandonaram o discurso da ética e da cidadania. Preferiram, de forma obsessiva, se ocupar com a preparação para o mercado de trabalho. Trocaram a lógica dialética pela lógica formal, operacional. O debate de idéias não ocupa mais as agendas universitárias. Aderiram às pressões do mundo técnico. Com isso, a educação está abrindo mão do espaço de formadora de cidadãos, aquela que prepara para uma convivência saudável entre valores contraditórias e discordantes. A polêmica e o conflito são formas de expansão do pensamento. O caráter negativo de focarmos apenas as matérias técnicas é o distanciamento dos jovens em relação à essência humana.
              A maldade não brota do nada. O rancor expõe insegurança, infantilismo, inveja. Ele é lançado sobre o outro que nos incomoda, provoca. A fúria tenta impedir que  desfrute da posição que conquistou. Mais que ódio, rancor é sentimento que se guarda e,  ao ressurgir, volta a atacar. Educar implica ensinar a ganhar e a perder. O fracasso é parte da condição humana. No deserto, longe dos bons sentimentos, a moçada solta o leões exigindo privilégios historicamente petrificados.            [1] Artigo publicado em 6/09/2014 no caderno Pensar do jornal EM. Inez Lemos é psicanalista.