Inez Lemos[1]
“A verdade é que não havia mais
ninguém em volta. Meses
depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de
almas”. O outro concordou, sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E
longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres
mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente,
bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto,
vezenquando salgadinho no fim do expediente, champanha nacional em copo de
plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de
imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou”.
Esse fragmento do conto Aqueles
dois, de Caio Fernando Abreu, adaptado para o teatro pela Cia. Luna Lunera,
espalha, de forma poética e contundente, questões de aparente mediocridade e
repressão que estão na ordem do dia.
A história se passa em uma
repartição. O ambiente de trabalho é retratado como o palco das fofocas e dos
olhares repressores, recheados de moralismo e hipocrisia. Dois rapazes se
conhecem na empresa e logo sentem uma afinidade que os une para além da cama. O
foco se amplia nos papos sobre filmes, músicas, mulheres, interesses.
Discretos, selam uma amizade reforçada pela solidão – ambos viviam sós. “No
deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma
mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade – de certa forma, também
em nenhuma outra -, a não ser a si próprios”.
Os papos nos almoços de domingo eram
regados a boleros: El Dia Que Me Quieras,
Perfídia, La Barca. O encontro dos dois metaforiza descanso na loucura - as veredas dos
sertões, o oásis no deserto. A solidão é marcada pela ausência de desejo, de
algo capaz de inundar a alma de alegria. Era isso que Raul representava para
Saul, a possibilidade de transcender o cimento, o barulho dos ônibus, as
cabeças mesquinhas da repartição. Um encontro que permitia mergulho nas
entranhas. Ambos abusavam do cinema e da música para se salvar. A arte é condutora
de vitalidade, além de hidratar, planta entusiasmo onde impera desalento. O
conto denuncia a mediocridade que subjaz a homofobia, o preconceito. O que leva
pessoas a se ocupar com a cama alheia, a se interessar em investigar se entre
duas pessoas do mesmo sexo há algo além de amizade?
“Uma noite, porque chovia, Saul
acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos
molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos
e desalentados trocaram alguns olhares...Mas nada perceberam, nem os olhares
nem duas ou três piadas”. O fato se alastrou pelos corredores. Logo, foram
surpreendidos pelo chefe de seção, que lhes comunica que, em função de umas cartas
anônimas denunciando “relação anormal, ostensiva e desavergonhada” entre os
dois, era obrigado a demiti-los.
Preconceito, moralismo, fofocas,
maledicência - significantes que se alastram como erva daninha nas instituições.
Caio responsabiliza: infelicidade, tédio, vazio cultural, vida interior
empobrecida. “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol
parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais
conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a
nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. A alegria diante
das afinidades que envolvem uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode
provocar incômodo, inveja. Contudo, presenciamos um outro fator que vem
incentivando a ira aos homossexuais – o uso político da homofobia para defender
interesses econômicos.
Ao longo da história, o preconceito foi usado pelo Estado em defesa de interesses
financeiros. Durante a colonização do Brasil, Portugal escravizou africanos em
nome de uma suposta inferioridade do negro – homens fortes, bons para o
trabalho braçal, porém incapazes para o trabalho intelectual. Hitler, ao criar
o nazismo e em nome de uma eugenia, promoveu o genocídio dos judeus, uma vez
que ser judeu era pertencer a uma raça impura. Sempre teremos justificativas
para exercer dominação, sempre descobriremos aspectos que operam como desculpas
para excluir, perseguir e exterminar uma parcela da população.
No caso da homofobia, presenciamos
uma narrativa que tenta se apoiar na religião e explorar a importância da
família ‘hierárquica’ de outrora. Na verdade, as igrejas neopentecostais estão
tentando criar um fator que justifique a importância de fortalecer a bancada
evangélica. Destacam passagens do Antigo Testamento e proclamam que Deus não
abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na defesa da família abençoada
por Jesus, é fundamental a inserção na política. A isca é jogada de forma
truculenta - estratégias fascistas e terroristas são usadas sem pudor. As
notícias são estarrecedoras.
“Vereador de Dourados, Sergio Nogueira (PSB), sugere enviar homossexuais para
uma ilha por 50 anos”. Contudo, há pastores convocando a nação masculina a
resistir à onda de boiolas que assola o país: “Está tendo uma deficiência
nacional de homens, esta geração não produz homens, esse governo está
efeminando os homens, os homens tem se vestido como gays, e para ser pai, rei,
profeta, você precisa ter porte varonil, Deus fez macho e fêmea, fez o homem
para ter macheza, virilidade, ser líder...o vetor que guia você não é a
ciência, as artes, o cinema.... isso é coisa do diabo”.
A família nuclear, geralmente centrada no pai provedor, autoritário e
machista, não é lembrada com carinho por filhos e esposas. Muitos saudosistas
lamentam a mobilidade das novas configurações familiares: monoparental, casal
homossexual, entre outros. A casa se democratizou, o poder circula entre
muitos. A idéia do homem como único detentor do falo não cola mais. Será que
devemos ter saudade do pai coronel - patriarca que, com mão de ferro, comandava
a família como comandava a propriedade rural? Desde que alguém cumpra com a
função paterna e materna adequadamente, as crianças estarão salvas.
Apropriar-se da beleza poética da peça, ao denunciar aspectos do momento
político que vivemos e que mais nos remetem à Idade Média, é uma forma de
resistir ao medo das trevas. A ameaça chega prometendo noites escuras, uma vez
que o capeta do fundamentalismo odeia poesia, cinema, teatro. Tudo que Raul e
Saul amavam. Como combater o pensamento retrógrado, alienado - jogo político
sujo, desavergonhado e perverso? Pastores evangélicos, em sua maioria, convencem
os fiéis com táticas de guerra, pregam com gritos, chutes e palavras de ordem: ‘vamos
derrotar Satanás’. Não se pregam mais solidariedade, tolerância, perdão,
respeito.
Ao tratar questões da sexualidade humana com religião, deslocamos o foco
e enfraquecemos o debate. A homossexualidade é efeito dos amores edípicos, diz
da forma como a criança foi marcada pelos pais – identificação maior com a mãe,
negação do pai. Em meio à complexidade da questão, o sujeito orienta a
sexualidade que, por sua vez, não resulta de uma escolha consciente,
deliberada. É algo maior que a ele se impõe.
Ninguém nasce racista, nazista, homofóbico, violento. Ao rechaçar o diferente,
desdenhando, fofocando e humilhando-o, há esperança dele se retrair e perder a
força para lutar. Raul e Saul enfrentaram o moralismo insano dos colegas com
altivez. A rotina mortífera do trabalho não perdoa ninguém. E a fofoca é o raio
de luz que rompe a solidão e a mesmice, movimentando o tédio. A alma
empobrecida e solitária padece no deserto e convoca inveja, maledicência.
Caio denunciou o preconceito com paixão e entusiasmo, nada de jogar pedra
no senso comum que perambulava pelas esquinas frias e sujas de São Paulo. A
moçada da Cia. Luna Lunera entendeu o recado. Entra no palco esbanjando
talento, simpatia e convicção na arte - espada ideal para combater o
obscurantismo dos reacionários.
Os atores se entregam ao texto lembrando a importância do teatro como
arte engajada, munição contra a crueldade do mundo. Reprimir, culpar,
introjetar pecado e criar demônios - quantas não são as formas desumanas de
conquistar o poder e ganhar uma eleição? Quão emocionante é ver jovens
dedicando a vida ao teatro - apostar no belo é a forma ideal de denunciar a
maldade humana. Pobreza que cochila nas almas desertas - mendigas de amor e
poesia.
[1] Artigo
publicado em 27/09/2014, no caderno Pensar do jornal E.M. Inez Lemos é psicanalista
e consultora em educação.