Inez Lemos [1]
Qual a conexão que podemos estabelecer
entre a família brasileira e a cultura de corrupção que se implantou no Brasil
desde que a Coroa portuguesa aqui se instalou? O modelo de colonização
português foi de exploração e não de povoamento, como o que ocorreu nos Estados
Unidos, pelos ingleses. Explorar o máximo de riquezas de forma predatória, por
meio de mão de obra africana e escrava. Desrespeitando índios, culturas, rios e
florestas. Na casa-grande, vão se instalar os donos das terras, os coronéis e
nas senzalas, os escravos. Assim nasce a cultura brasileira, marcada pela
segregação e exclusão. A desigualdade social, que sempre fez parte do projeto
civilizatório, nunca foi empecilho ou alvo de críticas pelos defensores do
desenvolvimento econômico brasileiro.
Como repensar a corrupção que sempre
dominou as grandes empresas nacionais? Furnas, Petrobrás, Vale do Rio Doce
(antes da privatização), sempre foram alvos de políticos e empresários
ensandecidos pela cultura de propinas. Ao que hoje assistimos é parte de um
modelo corrupto que aqui chegou, se expandiu e que, além de não o erradicarmos,
o alimentamos. Sem repensar qual cultura que queremos educar os filhos, sem definir
o modelo filosófico e político que escolhemos viver não saberemos como contribuir
com a mudança de paradigma.
Pais culpados por trabalhar em
excesso e se ausentar da educação dos filhos - tensos e pressionados em atender
às demandas de consumo -, acabam perdendo autoridade. Pais subservientes aos
modismos, ou por comodismo, aderem às posturas antiéticas. Muitos justificam os
atos insanos alegando que, se não submeterem, os filhos se sentirão excluídos.
A subserviência dos pais nos remete à do país - que nasce submisso a outro com
a missão de fornecer ouro, prata, terras e mulheres. E que, tardiamente, inicia
os primeiros passos rumo à distribuição de renda, fator que garante a autonomia
e a resistência do cidadão aos mandos e desmandos do poder econômico. Ao se aproximar da opção ética de vida,
devemos intensificar a participação social. Incentivar, entre as crianças, a
convivência positiva, não predatória. Se respeitamos o espaço público, se jogamos
o lixo na lixeira e não na rua, se evitamos fila dupla, reafirmamos a opção
pela ética, pela não corrupção, uma vez que estamos subvertendo os impulsos
perversos. Corrupção e perversão, dois conceitos que se entrelaçam. Qual a
política social que defendemos? Exclusão ou inclusão? Há uma diretriz ético-política
que nos obriga a repensar os rumos que traçamos para os filhos. Enriquecer a
qualquer custo? Educá-los para a submissão ao mercado, ou encorajá-los nas
escolhas que priorizam a realização pessoal?
O conceito de ética coloca o outro no
centro da questão. Uma escolha ética exige consciência social, propostas que
implicam o outro e ultrapassam o mero prazer. O princípio é o bem comum, convivência
que garante qualidade de vida à maioria. Não há desenvolvimento econômico sem
preservação do espaço público. Sem os mananciais não teremos água, bem sagrado
que não pode ser privatizado. A Amazônia é uma dádiva dos deuses, e, no
entanto, o homem está destruindo-a. Como ensinar a reverenciar a natureza mais
que shoppings, livros mais que sapatos? O respeito a si e ao outro requer alfabetização
na linguagem do coração - exige que demos ouvidos aos ruídos que brotam das
entranhas e das montanhas.
Se a ordem colonial e que muitas
famílias conservaram era a de acumulação a qualquer custo, manipulando e
acobertando atos ilícitos, a novidade que defendemos é a resistência à cultura
da omissão. Omissão e submissão rezam na mesma cartilha. É quando ao filho não foi
ensinado a assumir, tampouco a se responsabilizar pelos erros. Ou quando nos assujeitamos às manipulações de
mercado, às propagandas que nos influenciam com produtos não saudáveis. Toda
escolha é um ato político e exige coragem moral. Cabe aos pais e educadores
formar, na criança, o olhar crítico que a defenderá do lixo televisivo e de outras
promiscuidades - questionar posturas machistas e preconceituosas. Como os casos
de estrupos às estudantes do curso de medicina da USP (Universidade de São
Paulo) pelos colegas. A prevenção contra a violência e a corrupção nos remete à
castração – como os pais interditam as pulsões perversas dos filhos.
Como eliminar os mecanismos que viabilizam a corrupção? Como criar as
condições culturais para que o desejo de ética se estabeleça? Educar para que
brote nas crianças as razões que as levarão a defender a honestidade - seja por
escolha ou constrangimento. O declínio da função paterna deflagra o declínio da
ética quando sentimentos como constrangimento e vergonha são substituídos por
arrogância e cinismo. A cultura da ostentação é uma forma velada de favorecer a
corrupção, uma vez que ela prega o culto à aparência e ao espetáculo. O show
narcísico dos políticos é caro e exige segurança. O culto ao poder seduz e
induz à corrupção - forma tentadora de enriquecimento rápido e vultoso. O
perverso gosta de se sentir protegido para agir, roubar. E a política é palco que
garante prestígio, fóruns privilegiados.
Chamar os políticos de ladrões, corruptos, sem-vergonha, é simplificar a
questão. Tudo isso faz parte da sexualidade humana, são atos perversos. A
perversão significa “versão em direção ao pai”: ela provoca e escarnece a lei
para melhor a desfrutar. A velha política exige liderança, aquele que pode tudo
- lugar do pai primevo, o que tinha todas as mulheres da horda, o único que
gozava. É muito difícil ocupar o poder de forma ética, democrática, pois o
poder traz em sua essência a père-version
- a versão do pai, o que detem o poder! Contudo, os que não foram educados para
respeitar as regras que regem o espaço público são seduzidos pelo poder. Lá
eles fazem e acontecem à revelia dos poucos neuróticos que tentam manter a
moral, a ética e a lei.
Famílias interessadas em contribuir com a seriedade das instituições, como
na defesa e no fortalecimento da democracia, deve se ocupar com a educação sexual
e psíquica dos filhos. Quanto mais exemplos dos pais no campo da cidadania e da
ética, menor as chances de condutas perversas e corruptas se alastrarem.
Ninguém nasce corrupto, perverso e criminoso. O cidadão se torna assim em
função da educação que recebe. Não se nasce corrupto, torna-se corrupto. O
Brasil sempre cultuou condutas perversas e de desrespeito à coisa pública. Atos
antirrepublicanos.
O momento político que vivemos é propício na reafirmação do mundo que sonhamos,
como também na qualidade do ser humano que desejamos deixar neste mundo. Ou contribuímos
para a transformação ética do país, exigindo da sociedade reflexão nos valores e posturas que alimentam
o ódio à igualdade e à democracia, ou sucumbiremos à barbárie. Pais que não
inserem os filhos nas leis civilizatórias acabam compactuando com a cultura da
corrupção. Ao se submeterem aos caprichos e mimos dos rebentos, deixam de
prepará-los para as interdições, conflitos e frustrações que a vida lhes imporá.
Jacques Rancière, em Ódio à
democracia, coloca em xeque políticas liberais que, embora defendam esta
forma de governo, deturpam o ideal democrático, seguindo as determinações de
uma classe dominante que não aceita perder espaço entre as forças capitalistas.
No Brasil pós-eleições, assistimos a uma parcela da população que foi à rua
explicitar a obsessão pelo individualismo democrático. Para Rancière, esse
conceito é parte do chamado ódio à democracia. Uma classe de abastados que não
concorda em contribuir com políticas que visam diminuir as desigualdades
sociais, tampouco perder o lugar e as condições de privilegiados. Muitos chegam
a surtos e delírios e, sem nenhum pudor, lançam palavras de ordem a favor da
intervenção militar. Convocam a ditadura em defesa dos abusos patrimoniais -
modelo apropriado pelas oligarquias.
O ódio à expansão de oportunidades aos excluídos deve ser combatido nas
salas de aulas e nas famílias. Vida feliz inclui ensino à cidadania. A
democratização do Estado é antídoto à delinqüência. A desfaçatez dos políticos
e o enriquecimento ilícito são um convite à corrupção. Além de injusto, gera
violência e revolta. Ao defendermos direitos, promovemos autonomia e ética.
Neste Natal, recomendamos de presente aos filhos, ética. Interditar a
criança em seus atos descabidos e perversos. Reprimir e frustrar é não
submissão aos impulsos narcísicos. É prevenção contra a perversão, à violência
e ao crime.
[1] Artigo
publicado em 20/11/14 no caderno Pensar do jornal EM. Psicanalista –
email:inezlemoss@gmail.com