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e entusiasma a alma.

domingo, 1 de novembro de 2015

Geração Tarja Preta


Inez Lemos
            Acredito ser papel dos intelectuais anunciarem as mazelas de seu tempo, como bem fez Roseli Fishmann, professora da Universidade de São Paulo (USP), ao denunciar os perigos que a “geração Ritalina” está sujeita, tendo em vista o aumento do consumo da medicalização em substituição a processos educacionais mais plenos – uma solução aparentemente confortável para as famílias, escolas e sociedade. Todo educador deve prevenir os pais ao desconfiar que o caminho apontado como saída coloca a saúde do estudante em risco. Ao debater o uso de Ritalina e congêneres, devemos estender o olhar à cultura a que estamos submetidos, e que reforçamos quando exigimos, de forma obsessiva, que os filhos potencializem o desempenho escolar.    
Quais as conseqüências, na saúde psíquica dos filhos, de pais ansiosos por resultados, e que exigem rendimento escolar a qualquer custo? Muitas crianças estão crescendo entre adultos aflitos e estressados. Sociedade ambiciosa, competitiva, crianças inquietas, irritadas, hiperativas. Pesquisas apontam que o consumo de Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes. O medicamento, composto de metilfenidato, tem sido indicado no tratamento de TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Crianças indisciplinadas em casa ou na escola, que manifestam algum incômodo ou desajuste, ou não correspondem às expectativas dos pais ou professores, tornam-se candidatas à “droga da obediência”. 
            A proposta é alertar pais e educadores para a necessidade de ampliar o olhar sobre o sintoma, questionando diagnósticos apressados. Antes de empurrarmos as crianças ao abismo, lembrar que os efeitos colaterais de tais medicações são tenebrosos. Qual o futuro de uma criança que, desde cedo, é submetida a drogas tarja preta que atuam no sistema nervoso central, gerando dependência física e psíquica?
            Vivemos num mundo marcado pela pressa e pelo barulho. Muitas famílias adoram levar os filhos para almoçarem, aos domingos, nas praças de alimentação dos shoppings - lugar pouco ameno e tranquilo. Muitas casas acordam com a TV ligada em alto volume. Poucos zelam pelo silêncio - cuidado em proporcionar às crianças clima sereno, propício aos estudos e à reflexão. Geralmente, não gostamos de parar o que estamos fazendo para ouvir o filho, acolhê-lo. Infância é lugar desamparado e povoado de fantasmas. Contudo, o que essas crianças estão querendo dizer com as inquietações? Hiperatividade? Que barulho é esse?
            Muitas vezes, a criança chega à escola atravessada por conflitos, angústias, pressões. Entram na vida das cobranças despreparadas, desavisadas. São empurradas, sem defesas, à lógica do custo/benefício. Logo soltam o grito de socorro: “Se com vocês o que interessa é obedecer sem questionar, cabe a nós, descontentes, manifestarmos o protesto - seja pela desobediência ou pela inquietação, importa avisar que assim não rola”. Qual a forma exata que uma criança, insatisfeita e incomodada com a sua vida, deve se comportar? Onde que elas estão aprendendo a serem ansiosas e estressadas? A quem interessa a homogeneização, o silenciamento dos incômodos? Será que a mordaça, que antes era imposta pelos governos autoritários, deslocou-se para os lares e escolas?
            Além das controvérsias sobre a medicalização, muitos especialistas questionam a veracidade dos diagnósticos, denunciando a banalização com que são realizados. Será que estamos sofrendo os efeitos de um saber científico que, motivado por interesses econômicos, conspira contra a saúde da humanidade? Uma rede de serviços, orquestrada por um conjunto de iniciativas, apostam, cada vez mais, na produção de diagnósticos que, outrora, eram desconhecidos. Panicados e transtornados, devemos todos exibir a carterinha, a senha de dependentes de drogas lícitas - candidatos a um futuro morto.
            Domar a lucidez em troca de uma falsa felicidade, triunfo diabólico dos psicofármacos. Um elogio à loucura, um retorno à nau dos loucos, pintada por Bosch, ao ilustrar os desajustados encarcerados em navios. Recurso medieval no tratamento dos que extrapolavam, fugiam às regras. Tratar todos sob um mesmo diagnóstico, uma mesma química, sem dar ouvidos à “locura” que cada um de nós carrega, é no mínimo perverso.
Quem nos diferencia, nos singulariza, é o sintoma. Ele diz do sujeito - seus anseios, fantasias, frustrações. Sinal, alerta que o corpo emite tentando dizer daquilo que não vai bem. Ele é salvação quando enfrentado com sabedoria e investigadas as razões - diferente de tamponá-lo com medicamentos. “A loucura não está mais a espreita do homem pelos quatro cantos do mundo. Ela se insinua nele, ou melhor, é ela um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. Assim, Foucault, em História da loucura, rompe o mistério, o obscurantismo que rondava a loucura, tratando-a como manifestação subjetiva. O importante é que investiguemos as doenças e suas metáforas, o que elas representam no mundo atual.
            O verdadeiro espetáculo advém dos delírios, quando deitamos e deixamos o pensamento voar, fantasiar. O renascimento rompe com as leis, os dogmas irracionais do teocentrismo. Hoje, contudo, quando o homem é tratado como coisa, não estão nos garantindo grandes vantagens. O poder de manipulação se apresenta em nova roupagem, nova nosografia.  O mal não é o fracasso da criança diante do que se espera dela, mas impedir que ela participe do tratamento, entenda o processo, apreenda as fases da vida. Tratar – falar, desvelar a verdade sobre si mesmo. O saber científico produz discursos com efeito de verdade, drogas com promessas de cura. Delegamos à medicina a saúde das crianças - a ela cabe normatizar nossas vidas. Estamos governando os afetos e as emoções como se fossem um fígado, um rim.  O olhar técnico impõe sua lógica.  Desterritorializados dos sentimentos, ingressamos numa existência artificial.  
            Será que existe uma ordem maldita na qual devemos nos espelhar ao educar os filhos? Ao incorporar o discurso médico sem questioná-lo, validamos as práticas  irresponsáveis do mercado. Zelar pela saúde dos filhos é trabalhoso - demanda dedicação, paciência e esforço. É estender o olhar sobre a família e a sociedade. Desresponsabilizar a cultura - pais, escola, práticas sociais, é, no mínimo, leviandade. Onde há grito e sofrimento, devem-se levar atenção e cuidado. Educar exige implicação na dor do outro, senão transformaremos sintomas em transtornos, doenças crônicas.
            Interessa chamar a atenção dos pais e educadores para o fenômeno. Propor que, antes de optar pela medicalização, que esgotem outros caminhos. Oferecer às crianças oportunidades, espaços onde possam entrar em contato consigo mesmas. Apostar nas múltiplas facetas do ser humano – carregamos uma multidão de interesses e habilidades a serem exploradas. No lugar de posturas desumanas, vivências intensas, consistentes e que honram a aventura humana. O contato com as entranhas, com o âmago, propicia êxtase. Vontade de gostar da vida. Ao acariciar o temor que espreita a infância, aplacamos a insegurança e promovemos apaziguamento. Interpretar os berros com ternura silencia a alma inquieta. Convoca as divindades necessárias, diante do desafio de educar uma criança. Já o barulho promove estresse, inquietação, agressão.
            Estamos nos pautando pelo discurso de uma ciência erigida na rentabilidade e que reduz o homem num ser biológico. Fugimos do mal-estar, optamos por tratamentos em que não somos convocados, não participamos do processo de cura. Transferimos aos filhos a mesma postura irresponsável diante das manifestações de sofrimento. Devemos refazer o olhar, inundá-lo de poesia, reformulando posturas e expectativas. Dar tempo  às demandas internas. Vida louca, chata, sem sentido. Crianças aborrecidas, rebeldes. Pressa, pressão. O mundo moderno desabou sobre nós murchando o sonho de vida feliz, enfraquecendo a autoridade dos pais e ampliando os focos de violência e epidemias.
Com a sacralização das especialidades, perdemos o elo da totalidade, o gancho com o estranho mundo dos sentimentos. Não há sintoma fora de contexto, pensamento isolado, escolas desconectadas da cultura. A dança é complexa e exige interação de seus pares. Pais, lembrem-se que a maior conquista do homem é cunhar sua liberdade e autonomia. Com coragem, recusar a barbárie, o olimpo dos tolos - os preguiçosos que seguem pegadas alhures, estranhas. Educar é abrir o coração ao filho, prepará-lo para o salto à cultura, à expansão do mundo. Desobstruir estradas, desmatar veredas. Esperança é crença boa, é escutar a vontade que chega de dentro - conquista necessária.                     
             




[1] Artigo publicado em18/05/2013 no caderno Pensar do EM.

sábado, 11 de julho de 2015

CRISE HÍDRICA E NARCISISMO

Inez Lemos

         A lógica em que o uso da água foi inserida em nossa cultura é a lógica da mercadorização, do consumo exacerbado e do lucro. Há tempos a água deixou de ser  recurso natural, um bem coletivo, para se transformar em mercadoria a ser vendida. No imaginário empresarial, é um produto a ser negociado como um objeto de consumo qualquer. O sucesso do capitalismo depende do quanto de fetiche e de ilusão consegue-se criar em torno de uma mercadoria. É quando a água abandona o valor de uso e incorpora o valor de troca. Ela circula na perspectiva da acumulação, o mundo dos negócios a utiliza para alavancar investimentos. É peça chave nas empresas, dela depende o Capital, os meios de produção.
         A crise hídrica nos impõe um paradoxo: como conciliar conceitos e práticas sociais petrificados no discurso da rentabilidade e da ostentação, em que  competição, cliente preferencial e patrimônio confrontam com o discurso da ética e da necessidade de economizar água? De repente, inicia-se o processo de deslocamento de posição: a água não deve mais ser vista como uma mercadoria rentável, seu uso deve ser racionado. O discurso agora é o da consciência social e da cidadania, pois se trata de um bem natural, de uso coletivo. Se educamos as crianças no excesso e na lógica do desperdício, como enfrentar tal desafio? Na TV, logo após as propagandas de sapatos e cosméticos, temos os órgãos responsáveis pela captação e distribuição da água solicitando que a população economize, poupe, não desperdice tão precioso recurso natural.
         Quando convocamos a população a prestar atenção em seus hábitos, a  investigar se eles estão adequados ao conceito de cidadania e ética, supomos que ela esteja sensibilizada para a questão. Mas isso não ocorre, pois não educamos as crianças em valores envolvendo significantes que instituem a prática de poupar, implicar, cuidar, prevenir, respeitar. Cuidar da água é prevenir, contrapondo ao descaso com a natureza, rios, mananciais e florestas. Muitos nascem e crescem entre asfalto, condomínios e jardins artificiais, convivem com o arremedo da natureza e não percebem o quanto estão distantes da origem das coisas. Alienados do processo de produção das mercadorias, julgam normal usar e abusar, uma vez que desconhecem o que diferencia leite de suco, água de coca-cola, frango de salsicha.
       Para que possamos aderir aos apelos de usar água de forma racional,   deveríamos ser sensibilizados para tal, pois racionar implica sacrifício, mudança de hábitos, abandonar o conforto e abraçar uma causa desconfortável, que pode gerar mal-estar. A subjetividade contemporânea não prevê felicidade na lógica da economia. O brasileiro cresceu sob a cultura do desperdício, poupar não está em nossa agenda. Gostamos do excesso - e racionalizar água implica banhos rápidos, além de outras práticas que garantem menor consumo. Para tanto, é necessária a intervenção no corpo desejante, pois ações governamentais não podem ficar à mercê da boa vontade da população.
        Em Considerações atuais sobre a guerra e sobre a morte, Freud desconstrói a ideia de progresso e registra a descrença no ser humano em questões coletivas, questões que envolvem o bem social. Nesse momento, a esperança iluminista se desfaz: igualdade, liberdade e fraternidade. Diante da devastação provocada pela guerra e da banalização da morte, evidenciou-se o fracasso da razão universal, constatando-se que o exercício do mal estaria no centro da razão civilizada. Ao deparar com a presença da morte e do mal na orientação psíquica, Freud perde a ilusão que sustentava a dimensão simbólica da vida social. Ao constatar que a política não consegue dar conta das diferentes subjetividades, cunha a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ou seja: pouco se pode esperar de cada um quando se trata do bem-comum.
Para que o cidadão assuma as campanhas de economia de água, ele deve ser mobilizado em novas posturas, aderir a restrições e limites sem sofrer. Poucos governos trabalham com prevenção e sensibilização, inserindo desde cedo o cidadão no princípio educativo. Quando a criança é educada convivendo com a frustração, quando os pais a deixam na falta, não tentam supri-la em tudo, ela aceita melhor as interdições e renuncia às pulsões de forma mais tranqüila. Educar para a cidadania exige coragem dos pais em coibir excessos e caprichos dos filhos, conduzindo a criança a aceitar as restrições necessárias. Geralmente, nada se consegue quando a interdição ocorre sem que ela, desde pequena, tenha sido inserida na lei. É de pequeno que o corpo pulsional é contaminado pelas exigências do projeto civilizatório.
            Mal-estar, frustração e irritação são efeitos da renúncia pulsional. Há mal-estar quando temos que restringir demandas e caprichos. Quanto mais se educa o filho no excesso, permitindo e, muitas vezes, incentivando apelos descabidos, contribuí-se para que o sofrimento se instale. O mal-estar contemporâneo é gestado no excesso de permissividade. A ausência de interdição explica a dificuldade dos pais em impor leis e limites. A sociedade de consumo explora a ausência da metáfora paterna. Permitir vende mais que reprimir, o que ajuda a explicar a crise de autoridade, a crise na função paterna e materna.
           Quando o espaço privado entra em crise, o público também sofre as conseqüências. O declínio do poder paterno provoca o declínio do poder público. Quanto maior a ausência de intervenção pulsional, menor a chance do cidadão em aderir às campanhas de regulamentação e socialização do uso da água ou de outros recursos naturais. O pacto selado entre as famílias é o que garante o pacto na sociedade.
     Toda vez que surgem propostas que rompem com o imaginário social petrificado no individualismo consumista, exigindo ética no uso do espaço público, há desconforto e perda de gozo. Tudo que fere a fantasia fálica de privilegiado e poderoso, significantes sustentados na ilusão de completude, provoca uma contratransferência, pois o indivíduo estabelece uma relação fálica (de poder) com o objeto - no caso, com a água. Gastar água ao bel prazer é operar no gozo – quando o sujeito não quer saber, tampouco se implicar.
            A questão passa, então, pela necessidade de ativar no cidadão a consciência em relação ao uso racionalizado da água. Como encetá-lo em práticas educativas adversas ao mundo da ostentação e acumulação patrimonialista? Educar na ética exige que a criança seja inserida na ordem simbólica que sustenta o enunciado. O discurso que predomina na sociedade de mercado não articula significantes que sustentam a lógica do bem comum, exigindo parcimônia nos hábitos. Educamos para o lucro, opulência e fartura. É quando a criança cresce vendo os adultos usando a água sem restrições: escovando os dentes com a torneira aberta, tomando banhos prolongados ou exigindo da faxineira lavar as calçadas.     
       Toda mudança requer sacrifício, adesão a novos paradigmas. Como migrar da lógica da competição para a lógica da colaboração? Tornam-se necessárias rupturas internas, abandonar montagens perversas que debocham da metáfora paterna. Montagens cristalizadas em atos poucos transparentes e que não se ajustam às escolhas fundadas nos princípios de cidadania. Cultuar privilégios não é reivindicar ética, lisura no uso da coisa pública. Ao regular o uso da água, devemos dialogar com as subjetividades – operar com o simbólico desconstruindo a lógica objetiva, racional. Deslocar-nos da esfera do cliente para a esfera do cidadão: desviar o uso da água da lógica do mercado, em que o cliente bom é o que mais consome.
       Um novo cidadão há de surgir na defesa das causas públicas quando novas formas de subjetivação, distantes da razão cínica de sempre levar vantagem, forem contempladas. A retórica da ética e do bem comum é frágil e insuficiente diante do imperativo de gozo, quando o sujeito não quer perder nada, mudar nada, restringir nada! A forma como ele vai responder às demandas de racionalizar água dependerá de como  foi inserido na ordem simbólica que prega ética no uso da coisa pública. Como mudar uma cultura, gestar outra concepção de mundo e intervir em práticas que envolvem narcisismo, desejo e pulsões? Nunca é tarde para reiniciar posturas decentes e cobrar responsabilidade dos envolvidos na questão.      

quarta-feira, 6 de maio de 2015

EXCLUIR E PUNIR

 Inez lemos
            O filme Casa Grande, de Fellipe Barbosa, coloca em cena o debate das cotas raciais, personagem central no combate ao racismo no Brasil - enquanto o negro for excluído da sociedade, dificilmente será respeitado e acolhido. E para que a inclusão ocorra, ele deve participar das oportunidades que o país oferece. Sem educação de qualidade, sem a inserção no mercado de trabalho e, portanto, na sociedade de consumo, sempre será visto como marginal. A tríade negro, pobre e bandido ainda provoca ressonância nos remanescentes da Casa Grande, cujo imaginário confunde favela com senzala, negro com escravo e pobre com bandido. As cotas são um dos projetos polêmicos que acirram as diversas formas de leituras do tecido político, social e cultural que vivemos.
Destacamos também o que prevê a redução da maioridade penal de 18 anos para 16 anos. Interessa analisar o que subjaz ao projeto, quando esse defende interesses de segmentos sociais economicamente dominantes. Como entender famílias que se julgam do bem, honradas, concordar em encarcerar adolescentes que tem a rua como único recurso de sobrevivência, quando muitos são filhos de famílias abandônicas e desestruturadas? E, em função da falta de apoio e oportunidades, se lançam entre os desamparados e, com eles, ingressam no mundo do crime?
            O argumento de que, ao expulsar os adolescentes da rua por meio da repressão e punição, iremos reduzir a violência, é risível e despropositado. Sabemos que se repressão fosse a saída, a reincidência entre os encarcerados seria quase nula. Na defesa da exclusão da garotada que perambula pelas cidades, sem rumo e programas sociais eficazes, oculta o anseio pela sensação de proteção - fantasia de segurança. Excluir é mais fácil que educar, cuidar e prevenir.
            Cuidar de uma sociedade exige estender o olhar do início ao fim - do momento que a mãe engravida até o momento em que o indivíduo nasce, cresce e morre. Cuidar é mais promissor que abandonar – é mais barato educar bem uma criança, acompanhar sua trajetória e lhe garantir um futuro de oportunidades do que desampará-la e, depois de inserida em atos ilícitos, tentar recuperá-la. Diferente do que muitos afirmam, a maioria dos garotos de 16 anos não escolheram o crime como opção de vida -  foi a vida que, ao não lhes garantir melhores oportunidades, os jogou na contravenção. Muitos sequer foram alçados a seres humanos e conscientes de seus atos. Agem como animais, movidos por instintos e alheios aos códigos civilizatórios. Excluídos da função paterna,  operam fora da culpa. Apenas seguem os ditames do capitalismo cruel: matar para exibir o tênis de marca ou o último lançamento em smartphone.
            Na cultura da ostentação reina o narcisismo individualista e imediatista, que espetaculariza a aparência e despreza a essência. Contudo, somos responsáveis pela demanda dos garotos por objetos de consumo – estilo playboy. Quando os exemplos entre os adultos não coadunam com os discursos moralistas cristãos, respaldados na idéia do livre arbítrio, justiça e honra, fica visível o desejo insaciável em punir por punir, sem se preocupar em oferecer ao garoto chances de se recuperar. O apelo por justiça oculta vingança, maldade, preconceito e racismo. A eugenia é um projeto de limpeza, de higienização - excluir da praça os que incomodam.   
Para que o princípio de realidade sobreponha ao princípio de prazer, a criança deve ser interditada em suas pulsões perversas - limitada e contrariada em seu corpo pulsional, que berra, chora e exige o que lhe convém. Como bem nos lembrou o psicanalista Hélio Pellegrino: “O pacto edípico que garante o pacto social”.  Exigir de um adolescente renúncia pulsional, sem antes lhe oferecer um outro destino às suas pulsões, seria acreditar em autoformação, autogestão.
            Partindo do pressuposto de que ninguém se autoeduca, e que essa é função dos pais, talvez o melhor fosse criar leis que cobrem responsabilidade destes, e, em caso de descumprimento, recair sobre eles a punição devida. Quando um menor comete um crime, a Promotoria da Infância e da Juventude deve convocar os pais ou responsável e cobrar deles uma atuação mais fecunda junto ao delinqüente. Para tanto, o Brasil deve intensificar as políticas públicas de planejamento familiar que assegurem à criança um lar estruturado. Gravidez na adolescência, a metáfora da banalização da vida.
A lógica do imediatismo não inclui ações preventivas, apenas paliativos que mais machucam, punem e pouco recupera. Muitas vezes, o garoto parte para o crime como forma de reivindicar carinho e atenção. Sabemos que, ao ser privado de uma família que o acolhesse, muitos agem por revolta e vingança - cobram do mundo o que a vida lhes negou. Não devemos castigar e punir quem já é punido e castigado por sociedades excludentes, desiguais e injustas. Há de se descobrir formas mais eficientes, justas e humanas de inserir o delinqüente nos limites da lei. Não há impunidade para a criança que sofre privações afetivas e materiais, viver é a punição.  
            Para que o garoto respeite os códigos de convivência social e absolva as regras do bem viver, é preciso que, desde bebê, internalize as restrições e frustrações. A interdição no corpo pulsional provoca mal-estar, efeito da economia pulsional. Ao demandar uma sociedade menos violenta, devemos exigir propostas que visem cuidar e amparar o cidadão, oferecendo-lhe oportunidades, apontando direitos e cobrando deveres. Sem isso, ficamos apenas na retórica do dever cumprido, justificado pelo pagamento de impostos.  
            No século 19, Freud, ao intensificar seus estudos sobre a histeria, observa que onde havia um corpo urrando de dor, havia um desejo reprimido - efeito da repressão sexual da época sobre o corpo feminino. É quando a literatura começa a se abrir para o desejo sufocado, proibido e tão bem retratado em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nos romances, as heroínas vivenciavam relações sexuais extraconjugais, despertando o desejo entre as mulheres que, embora casadas, muitas não haviam experimentado o prazer sexual. Hoje, o sintoma social resulta do excesso de permissividade - ausência de repressão. Adolescentes que não são interditados em suas pulsões, quando deparam com a lei não a reconhece. A sociedade de consumo explora a permissividade por ela ser rentável – vende de tablets a sapato de salto para meninas.
            O declínio da metáfora paterna, quando os pais não impõem limites ao filho, culmina em jovens estúpidos. O show de violência, agressividade e desrespeito não se restringe às classes sociais. A roda que gira na senzala, gira também na Casa Grande. Um dia, as crianças de hoje serão os adultos desrespeitosos, machistas, corruptos e criminosos de amanhã. Sem consciência social, o Brasil da permissividade é um convite à ilegalidade e à corrupção. Criminalidade e função paterna - relação que inviabiliza responsabilizar apenas os garotos pela violência que aflige o país.  A criminalidade não é apenas dos adolescentes, mas de toda a sociedade. Talvez o segmento social que mais esteja interessado na redução da maioridade penal seja dos que sempre lutaram por privilégios, e não por direitos. Punir e excluir a garotada das oportunidades e dos recursos públicos fere o conceito de res-pública – coisa pública.
            O cidadão atual é um panicado, estressado. E anseia que algo aconteça e lhe devolva a tranqüilidade de outrora. Sai do trabalho e, em casa, é bombardeado pela mídia sangrenta que, por sua vez, é alimentada pela cultura do estupor, disseminando terror e pânico. É de se esperar que se anseie em retornar ao paraíso, lugar sem violência, assaltos, crimes. Longe dos conflitos sociais e das penúrias impostas pela desigualdade social, educação frágil e paternidade e maternidade irresponsável. Contudo, a sociedade atual quer abolir a violência sem enfrentar as raízes do conflito, apenas pela supressão do problema - punindo e excluindo os negativos sociais. Não há dúvida que, certamente, é sobre eles que a guilhotina recairá.  
            A subjetividade atual se caracteriza pela suspensão do pensamento, é quando o cidadão idealiza soluções fora do campo da reflexão, e, sem se implicar nas questões, se coloca passivo e alheio a tudo que o incomoda. É como se as agruras que o atingem fossem algo estranho a ele mesmo - não lhe cabe se ocupar ou tentar entender o mal que lhe acomete. Na inexistência de questionamento, o registro do pensamento fica suspenso. No jogo de omissões, implantamos o genocídio dos jovens e adolescentes, principalmente entre pobres e negros.     
                            


quarta-feira, 25 de março de 2015

PSICANÁLISE, ÉTICA E PODER

Inez Lemos

Entre as ações impossíveis de serem realizadas plenamente, Freud destacou a de governar. Embora a psicanálise não tenha formulado uma teoria da política e do poder, ela reforça que o governo não pode desconsiderar o sujeito desejante – sujeito fundado nas pulsões. Como inserir o sujeito no campo da ética, da política e do poder? Como conciliar as pulsões e a civilização? A problemática da política está em mediar o campo social, a ordem simbólica e mítica das relações, uma vez que cada cidadão chega atravessado por traços culturais, convicções e atavismos. Cada sujeito porta registros simbólicos que o singularizam. O pacto social exige a equivalência simbólica das forças  - Estado e sociedade.
             Quando os governos lançam projetos políticos que rompem com o imaginário social propondo mudanças historicamente petrificadas, sofrem forte resistência. Toda ruptura no campo psíquico provoca uma contratransferência, uma rejeição aos modelos que contrariam os códigos internalizados, seja de governos ou pessoas. Diante da proposta socialista, por exemplo, Freud, embora compartilhasse do sonho por sociedades mais justas, não acreditava na sua viabilidade, uma vez que a relação dos sujeitos com a riqueza se inscreve no circuito pulsional que regula o gozo. Perder dinheiro significa perda de gozo, e, para tanto, poucos estão preparados. A transformação do estatuto simbólico dos bens materiais implicaria em mudanças culturais e de valores, como também, na circulação do gozo.
             A instituição de uma sociedade menos desigual pressuporia a imposição de um limite ao gozo absoluto, operando como um interdito simbólico. Quando o sujeito é interditado em suas pulsões narcísicas, diante do imperativo do gozo se instala o mal-estar. Os conflitos entre interesses, muitas vezes explicados por motivos econômicos, geraram guerras e revoltas, desconstruindo o conceito de civilização universal e progresso. Contudo, a política deve transitar entre o universal (público) e o relativo (subjetivo). Daí a governabilidade ser um desafio que nunca se realiza completamente por se contrapor às demandas de gozo do sujeito. O conflito entre interesses, classes e idéias dificulta a democracia, uma vez que o narcisismo, a pulsão e o mal-estar na civilização fundam a desarmonia entre os cidadãos.  
Como entender o ódio que se disseminou na sociedade brasileira a partir da ultima eleição para presidente da República? A questão é aprofundar o olhar sobre o sintoma “Ódio ao PT” para além da realidade, extrapolando os conflitos partidários. Corrupção deve ser sempre combatida. Embora ela sempre tenha integrado o cenário político brasileiro, como explicar a onda de moralização, o furor por denúncias justo agora? O que subjaz à crise política que vivemos extrapola análises objetivas. A felicidade de uma nação não pode ser absolutizada, não é um valor universal, mas um valor relativo que remete às exigências pulsionais. Até que ponto as diferenças individuais e pulsionais inviabilizam a construção de um pacto social? Hegemonia prevê que a maioria dos participantes se una em torno de um valor universal.
Ao criticar às políticas públicas de transferência de renda, como o Bolsa Família, devemos estender o olhar às questões subjetivas – as diferenças se singularizam entre gozo e desejo. E o desejo se fixa na fantasia, que por si só tem algo de utópico. Não há nada de absoluto no campo das subjetividades, e a política administra fantasias humanas, cuja função é atuar na produção do desejo. Quando o desejo do sujeito é reconhecido, o cidadão abandona a fantasia de excluído e adquire um lugar na polis - conquista pertencimento. Conquistar identidade é conquistar poder. 
Os obsessivos por poder geralmente mantêm uma relação insana e perversa com a política. Manipulam e cometem crimes ao promover lobbies e garantir o “queijo intacto”. Brigam movidos por fantasias de riqueza, vaidades, poder. Há algo no psiquismo que dificulta avançar nas propostas de redução da pobreza. No Brasil, a retórica da democracia sempre se opôs às políticas públicas de amplo alcance social. Os projetos desenvolvimentistas ocorreram com dinheiro público em empreendimentos privados. Sempre convivemos com o Bolsa Boi, Bolsa Empresário, com o crédito ao agronegócio e às empresas. Contudo, o descontentamento com os investimentos do governo atual na área social deflagra a relação fálica de posse que o sujeito estabelece com os bens materiais. A lógica do lucro dificulta a aceitação, sem oposição, à expansão dos direitos sociais. Quando estes se estendem à maioria dos cidadãos, há perda de privilégios – a igualdade fere a fantasia fálica de acumulação.
            O gozo do sujeito contemporâneo está na ostentação da riqueza e na espetacularização da posse – imagem de rico e poderoso. O projeto de felicidade fundado na pós-modernidade e centrado na tecnologia reforça a cultura narcísica, individualista. O ideal de acumulação em que a riqueza material ganha primazia, muitas vezes não consegue produzir satisfação, uma vez que o viver em sociedade provoca interdições e renúncias pulsionais. É quando o sujeito se vê diante de propostas que contraria a ordem simbólica - orientação internalizada de ostentação.
 Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud enuncia que o homem é um animal de horda e não um animal de massa. Há algo no sujeito que o leva a rejeitar o social, a resistir aos processos de coletivização. No meio da massa, ele se entrega aos impulsos primários, abandona as interdições e, como animal feroz, defende seu naco de carne.
            Ao defender com violência o seu espaço, seu patrimônio e seu partido, o sujeito  demarca território. É o narcisismo que, ao impor singularidade, rejeita a igualdade. Freud, ao refletir sobre as guerras, cunhou a expressão “narcisismo das pequenas diferenças”. Ele explica os conflitos entre os cidadãos - fonte do ódio entre partidos, torcidas, nações. A “guerra entre partidos”, a conduta beligerante do atual Congresso Nacional expõe a obsessão pelo poder - digladiar por um lugar de destaque na arena política. A corrupção, o desejo de se locupletar de forma ilícita, se inscreve no circuito pulsional - é sintoma que escapa. Os perversos sempre rodearam o poder, lugar onde os atos espúrios são protegidos. 
            Quando governos tentam inovar com políticas sociais que rompem com o ideário da elite conservadora, que sempre determinou os investimentos públicos, há que se tentar uma intervenção e transformação no sistema de valores e na produção do desejo coletivo. Não é possível entender a resistência ao Bolsa Família - programa que não se resume a transferir renda, mas garantir educação, saúde, saneamento, eletricidade e moradia aos mais pobres -, pelo viés da razão moderna. Há algo no psiquismo que inviabiliza a construção de um modelo iluminista de cidadania, baseado no bem comum, uma vez que ele se oporia ao projeto universal de felicidade, quando as riquezas seriam mais bem distribuídas.        
            Quando a política não consegue dialogar com as diferentes subjetividades, não oferece outras formas de laço social senão as clássicas inseridas pelo mercado e poder econômico, o efeito é a evidente corrosão entre Estado e tecido social. Tudo isso aponta para uma crise estrutural de valores, provocando uma dicotomia - ruptura no ideal de nação. De um lado os defensores do status quo – riquezas e privilégios -, de outro a população, que anseia por projetos que lhes garantam qualidade de vida. Uma população mais educada, saudável e com acesso a bens e serviços é pré-requisito ao desenvolvimento mais sustentável e menos desigual. A inclusão social e produtiva dos mais pobres é benéfica para o conjunto da sociedade.
            Conclui-se que a relutância às políticas sociais, cujos impactos positivos na economia foram reconhecidos, aponta a dificuldade de se romper com a tradição simbólica que permeia as relações humanas, cristalizadas no preconceito e na resistência em conviver com a mobilidade social. Como em socializar os espaços de convivência e democratizar o acesso ao patrimônio público. Quando uma classe é ameaçada de perda de privilégios, ela sofre intervenção na relação fálica de posse, é privação do gozo. 

            O mal-estar que se instalou no país não pode ser explicado apenas pela corrupção na Petrobrás (uma vez que ela remonta a várias décadas), tampouco pela alta do dólar e da gasolina. É efeito de algo maior e que escapa às análises econômicas - diz da demanda de gozo do sujeito. Governar, educar e analisar são profissões infindáveis e incompletas.