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terça-feira, 5 de abril de 2016

ÉTICA, RESSENTIMENTO E FUNÇÃO PATERNA


Inez Lemos[1]

            Ao debater a tendência do brasileiro em querer levar vantagem em tudo, ser condescendente com atos antiéticos como: jogar lixo na rua, sonegar impostos, parar em filha dupla, destruir monumentos históricos, lembro que o descobrimento do Brasil fez parte do projeto de modernidade. No século 15, os europeus estavam à busca de riquezas e preciosidades, do luxo e do supérfluo. Contudo, somos filhos de uma relação de interesses (o português engravidava a índia para se aproximar dos que aqui viviam e detinham informações). Se moderno é substituir o ser pelo ter, cumprimos a profecia mercantilista da acumulação primitiva do capital. O luxo, o supérfluo, cada vez mais integram o cotidiano do homem moderno. Ser rico é poder exibir preciosidades. O que move a economia do mundo é o desejo insatisfeito. A formação do capitalismo revela em sua estrutura uma eterna insatisfação. A ambição que lançou Ulisses ao mar, Colombo à América, era diferente da que encontramos na farra dos políticos com o dinheiro público. Descobrir, querer construir um novo mundo é diferente de apropriar, dominar para explorar. Será sempre o Brasil terra de ninguém, onde leis como a de fixa limpa, jamais será cumprida? Seria o Brasil um convite à corrupção?
            A sociedade brasileira guarda em sua estrutura uma carga de ressentimento. Cada sociedade produz seus sintomas, e os nossos são estes: somos uma nação que se comporta como filho rejeitado, abandonado; o sentimento de inferioridade do brasileiro é traço relevante de nossa história. A corrupção, que no Brasil era vista como algo natural dos cargos de poder, como um direito dos que dela se beneficiam, só agora começa a ser investigada e punida, e ainda de forma seletiva. A política é o palco privilegiado da corrupção - e nossa história revela um passado coronelista, patrimonial, no qual os donos do poder sempre se utilizaram do espaço público como se fosse privado. Todo sintoma aponta para uma tentativa frustrada de cura, pois, embora denuncie o que não vai bem, ele revela um gozo, o que explica a compulsão à repetição.
            Interessa debater a falta de rigor do brasileiro com a coisa pública a partir da interface entre sociologia e psicanálise. Ao analisar a tendência à corrupção do brasileiro, penso na palavra ressentimento. Res-sentir - sentir duas vezes, não perdoar, guardar mágoas e alimentar o desejo de vingança, adiar conflitos.  Ressentimento não é um sentimento edificante, que leva o sujeito a produzir, crescer - pelo contrário, ele fixa o sujeito na neurose. O ressentimento do brasileiro - tema que Maria Rita Kehl, em seu livro, Ressentimento, aborda com propriedade - explica por que o Brasil é um país que goza da condição de nação explorada, ludibriada, trapaceada. Como se a forma de resolvermos isso é tentar descontar no erário, apresentar a conta para o Estado pagar na esperança de livrarmos do sentimento de injustiçados. O contato com a mídia que expõe um cotidiano promíscuo e corrupto, políticos, funcionários públicos e cidadãos, todos envolvidos em atos ilícitos, provoca na cultura brasileira desejo de desforra, de querer participar da festa. É a revolta do filho excluído, rejeitado. A corrupção metaforiza a atuação do filho ressentido com o pai perverso, que o lesa - passando-se ao ato, em vez de contestar e cobrar seus direitos.
            O psicanalista Contardo Calligaris, em Hello Brasil, ressalta a falta de um interdito paterno capaz de regulamentar o apetite pelo gozo e organizar um quadro social que outorgue a cidadania. O romance familiar brasileiro, nossa mitologia, produziu a fantasia do suborno e da usurpação. Revisitando as determinações histórico-sociais dos processos de subjetivação, deparamos com o descaso pela res-pública (coisa pública). Nosso processo civilizatório sofreu um deslocamento. O ethos que nos funda é o do prazer e não o da felicidade. Todo brasileiro sonha com o paraíso. O Brasil é imagem idílica. Nossa frivolidade revela a ineficácia de nossa interdição paterna. A volúpia e a sedução que o corpo exerce em nossa sociedade condenam nossa filiação. Somos um povo submetido ao imperativo do gozo. Somos os filhos bastardos do encontro entre o colonizador interesseiro e a índia exuberante. Somos filhos de um amor mentiroso, falacioso, pérfido. Nossa sedução é nossa traição. Atuamos como a filha delinqüente que recusa a lei e adora se prostituir. A promiscuidade atravessa nossa história e nos joga na sarjeta dos perdidos e vagabundos. A recusa de sair da senzala, a dificuldade em dizer não aos mandos e desmandos do Senhor, a submissão aos interesses estrangeiros nos condenam ao lugar de gozo – vida o caso Petrobrás, interesses em vende-la a preço de banana, como aconteceu com a Vale, alimenta a crise política que vivemos.
 Somos o sonho alheio do outro (o europeu), que procurava o paraíso. Lugar do permissivo. Até quando vamos repetir o pai abandônico, ganancioso e contraventor? A permissividade é o nosso sintoma. Somos volúveis, frívolos, fúteis e mascarados. Adoramos bugigangas! Somos carnaval, paetês e plumas. Aqui vale é a carne (carnevale). Vendemo-nos por espelhos e brilhos. Repetimos o destino colonial - permitimos que o estrangeiro entre e explore o melhor, seja ouro ou mulher.
            A crise atual que vivemos expõe nosso lado perverso, o recrudescimento do racismo, homofobia, preconceito de classe. Querem acabar com a consciência social e o ideal humanista? Querem o fascismo excluindo os menos favorecidos, os negros e deficientes? Viver é enfrentar contradições. Saber lidar com os paradoxos humanos. Ou será este um país que não quer dar certo? Será que todo político só quer o poder pelo poder? O niilismo, para o qual qualquer coisa é a mesma coisa, é lugar de preguiçosos. Prefiro acreditar que, embora exista uma disposição humana para a perversão, existem os que a recusam. Dominar traços maledicentes faz parte da vida. Contudo, ainda sonho com um Brasil analisado. E tenho esperanças de ver os brasileiros no divã, distante das terapias místicas. Sonho com uma sociedade política não corrupta e implicada na ética cidadã.
            O problema do Brasil é psíquico, não econômico. Vivemos sob a pulsão de morte. Antes de levantarmos a bandeira da moralização, devemos-nos perguntar: será que o Brasil quer mesmo recusar sua origem de cabaré, onde todos entram e gozam? Por que até hoje recusamos o público em favor do privado, a honestidade em favor do luxo, a memória em favor do efêmero? A corrupção brasileira é uma escolha? Faz parte de nossa identidade? Será que gostamos de viver em um país corrupto? Ou o brasileiro não quer se implicar em um outro ideal de Nação? O que queres, Brasil? Será que sofremos de um masoquismo moral? A condição de sofredor, de ressentido revela erotização. E toda neurose, todo lugar de gozo, responde por uma filiação. Ao agirmos como perversos e sem culpa, denunciamos uma função paterna inconsistente, incapaz de nos inserir na lei. Por tudo isso nos é difícil sustentar um outro lugar, uma outra filiação.
            Falta-nos reinventar um projeto de país. Qual a moral brasileira? Ao Brasil, faltou uma fundação bem-sucedida que instituísse uma ordem fálica capaz de sustentar um significante nacional. Somos ausência dos Nomes-do-Pai. Faltou-nos o significante paterno, aquele que opera como referência simbólica na estrutura do sujeito. Como pode o brasileiro obedecer às leis, se ele é a falta da lei? Quando a filiação fracassa, a contravenção e o crime se instauram como arremedo da função paterna. Colonização e criminalidade, corrupção e gozo, exploração e ressentimento. Nossa história e seus significantes nos condenam. Nosso inconsciente, humilhado e envergonhado, fixou-se no fracasso.  
    Somos promíscuos por vingança? Vingança contra a exploração e a desigualdade social? A questão não está na desigualdade em si, mas na forma como nos relacionamos com o patrimônio. O sentimento de inferioridade está no inconsciente do sujeito e não em sua condição econômica. Pobreza e riqueza podem conviver muito bem, desde que não gerem competição. A comparação leva à inveja, ao ressentimento, ao “eu também quero”! Será que somos pobres porque fomos explorados, ou usamos da condição de explorados para eternizar a posição de vitimizados, eternos desavergonhados? O patológico é, ao cutucar a ferida narcísica, deliciar-se com o machucado. O Brasil é filho rejeitado, que não teve mãe carinhosa que o amasse, tampouco um pai comprometido com o futuro da prole. Filho do estupro entre o português e a índia; o coronel-fazendeiro e a escrava. Filho ilegítimo de pirata e forasteiro. Talvez por isso gostemos da sensação de levar vantagens - ela nos garante um conforto psíquico e nos traz a ilusão de reparação das perdas. Nossas praias são belas. O Rio é uma das cidades mais lindas do mundo, mas avacalhamos tudo. Nossa exuberância nos condena. Somos belos e complexados. E a corrupção, seria mais um traço da cobiça de nosso pai? Não estariam os políticos apenas denunciando o fracasso de função paterna?





[1] Psicanalista, historiadora e autora do livro Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (Autêntica).