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sexta-feira, 6 de maio de 2016

NISE – LOUCURA QUE SE TRANSFORMA EM ARTE


INEZ LEMOS[1]

            O filme, Nise – o coração da loucura, trata do trabalho que a psiquiatra Nise da Silveira desenvolveu no hospital - o manicômio Engenho de dentro, no Rio de Janeiro, nos anos de 1940. Nise, ao chegar no hospital, provoca um conflito - sua postura, seu olhar para a loucura entra em desacordo com a psiquiatria tradicional que ali se praticava. Por trás das grades e cadeados, se escondiam sonhos, talentos, sentimentos. Onde só se via loucura descabida, atos insanos, passou-se a desvendar seres carentes e sensíveis. Onde havia gente se lambuzando em excrementos e urina, descobre-se ternura e desejo de ser tratado como humano. Assim Nise inicia a transformação do hospício em ateliê de arte.
            Tratava-se o doente mental como objeto - um toco que se chuta, ou que se domina com choques, ou que se amansa com lobotomia. Deixar o ser humano se rastejar como rato, mal trapilho e sem banho, é covardia moral. É não respeitar a condição humana, é desapropriar o sujeito de sua aventura existencial, transformando-o em resto, sucata que a sociedade funcional encosta, lixo improdutivo. Bastou um olhar carinhoso sobre aqueles andarilhos desamparados para tudo tomar outro rumo. O cenário fétido e mortífero deu lugar a um galpão de gente pintando, brincando e se descobrindo. Os internos, por meio da coordenação de Nise, se deixaram levar pelo inconsciente. E começaram a derramar sobre telas os traumas recalcados - sonhos traídos, destinos ingratos, sortes roubadas.
            Nise chegou ao hospital e a porta estava trancada. Bateu e esperou, nada de abrir. Depois de muito tempo aparece alguém para recebê-la. É sempre assim, quando surge um conhecimento ou postura inovadora que rompa com a mesmice, quando um olhar revolucionário chega para desestabilizar as práticas equivocadas, as portas se trancam. Nise metaforiza o amor que denuncia a violência no tratamento psiquiátrico. Questiona o choque elétrico (terapia eletroconvulsiva) e rejeita a lobotomia. Recusa a agressão e introduz o carinho, a ternura. Prioriza o corpo erótico e despreza o corpo biológico. Eros, deus do amor que simboliza pulsão de vida, pulsão que produz forças ao trabalhar, amar ou chorar - de emoção, dor ou paixão. 
            O filme deve ser divulgado, pois a onda conservadora, essa nuvem obscurantista que se abate sobre o Brasil nesse momento anseia pelo retorno dos manicômios. A luta contra os empresários da saúde mental não pode parar. Hoje o saber/poder confina o sujeito em casa, medicalizando sem rigor, patologizando sintomas corriqueiros. A geração tarja preta banaliza o sofrimento. Do rivotril à ritalina, o ditame é portar transtornos. Criança ou adulto, o pathos está na moda. Poucos se interessam em investigar, decifrar o sofrimento psíquico. O divã está em baixa.



[1]Psicanalista. Email: inezlemoss@gmail.com