INEZ LEMOS[1]
O filme, Nise – o coração da
loucura, trata do trabalho que a psiquiatra Nise da Silveira desenvolveu no
hospital - o manicômio Engenho de dentro, no Rio de Janeiro, nos anos de 1940.
Nise, ao chegar no hospital, provoca um conflito - sua postura, seu olhar para
a loucura entra em desacordo com a psiquiatria tradicional que ali se praticava.
Por trás das grades e cadeados, se escondiam sonhos, talentos, sentimentos.
Onde só se via loucura descabida, atos insanos, passou-se a desvendar seres
carentes e sensíveis. Onde havia gente se lambuzando em excrementos e urina,
descobre-se ternura e desejo de ser tratado como humano. Assim Nise inicia a
transformação do hospício em ateliê de arte.
Tratava-se o doente mental como
objeto - um toco que se chuta, ou que se domina com choques, ou que se amansa
com lobotomia. Deixar o ser humano se rastejar como rato, mal trapilho e sem
banho, é covardia moral. É não respeitar a condição humana, é desapropriar o
sujeito de sua aventura existencial, transformando-o em resto, sucata que a
sociedade funcional encosta, lixo improdutivo. Bastou um olhar carinhoso sobre
aqueles andarilhos desamparados para tudo tomar outro rumo. O cenário fétido e
mortífero deu lugar a um galpão de gente pintando, brincando e se descobrindo.
Os internos, por meio da coordenação de Nise, se deixaram levar pelo
inconsciente. E começaram a derramar sobre telas os traumas recalcados - sonhos
traídos, destinos ingratos, sortes roubadas.
Nise chegou ao hospital e a porta
estava trancada. Bateu e esperou, nada de abrir. Depois de muito tempo aparece
alguém para recebê-la. É sempre assim, quando surge um conhecimento ou postura
inovadora que rompa com a mesmice, quando um olhar revolucionário chega para
desestabilizar as práticas equivocadas, as portas se trancam. Nise metaforiza o
amor que denuncia a violência no tratamento psiquiátrico. Questiona o choque
elétrico (terapia eletroconvulsiva) e rejeita a lobotomia. Recusa a agressão e
introduz o carinho, a ternura. Prioriza o corpo erótico e despreza o corpo
biológico. Eros, deus do amor que simboliza pulsão de vida, pulsão que produz forças
ao trabalhar, amar ou chorar - de emoção, dor ou paixão.
O filme deve ser divulgado, pois a
onda conservadora, essa nuvem obscurantista que se abate sobre o Brasil nesse
momento anseia pelo retorno dos manicômios. A luta contra os empresários da saúde
mental não pode parar. Hoje o saber/poder confina o sujeito em casa,
medicalizando sem rigor, patologizando sintomas corriqueiros. A geração tarja
preta banaliza o sofrimento. Do rivotril à ritalina, o ditame é portar
transtornos. Criança ou adulto, o pathos está na moda. Poucos se
interessam em investigar, decifrar o sofrimento psíquico. O divã está em baixa.